A Vivência do(s) Prazer(es)

Prazeres

Num dia de calor, porque não um sumo de toranja com gelo?

«Disse (escreveu) toranja? baahh que horror! não quereria dizer laranja? ou cerveja geladinha?»

Pois, o prazer tem destas coisas… O que a uns apraz, não apraz a outros… e por isso é tão importante que cada um descubra o que lhe dá prazer e que dê a liberdade aos outros de o fazer também. Pode memorizar os seus momentos de prazer aumentando a sua sensação de bem-estar.

Há alturas em que nos deixamos levar inteiramente pela compulsão de aumentar os níveis de prazer, numa busca constante e ansiosa de mais e melhor, esquecendo que, o que algumas vezes se passa, é que estamos com uma incapacidade de tirar partido do momento presente, na maior parte das vezes por problemas passados, que nos projetam sempre e sempre em antecipações futuras e nos roubam o prazer de simplesmente estar no presente.

A ansiedade constante arruina a fruição do prazer. E, não conseguir desfrutar do prazer, dificulta também a vivência da dor duma forma adaptativa.

Seria quase impossível falar de prazer não abordando dois dos maiores prazeres: O prazer da mesa e o prazer da cama, ou, dito de outra forma, o prazer da comida e o prazer do sexo.

O prazer que os sabores de que mais gostamos nos dá, pode ser, dependendo do gosto de cada um, a nossa perdição. Quando sonhamos com enchidos e açordas, com ensopados e feijoadas, com gelados e doces conventuais e com tudo o mais que regala o olho e o palato, seja doce, salgado ou picante, mas muito calórico, demasiado gordo, etc etc, é natural que tenhamos alguma dificuldade em usufruir deste prazer sem consequências drásticas para a saúde, porém, isto jamais poderá significar que prazer e saúde são incompatíveis, ou que ter prazer é inimigo da saúde, ou, que para se ser saudável há que renunciar ao prazer. Nada poderia estar mais errado. Para se ter saúde tem de se evitar excessos, mas nunca o prazer.

O que podemos é autoregular o prazer. Como?

Precisamente saboreando melhor e mais lentamente degustando e não, comendo sofregamente. Também será importante ir encontrando prazer na descoberta de muitos e variados alimentos e bebidas saudáveis, tentando que a ingestão do que é tido como “fazendo mal em excesso”, seja feita com menos frequência e em menores quantidades, mas sempre sem culpa. A culpa impede o usufruto pleno do prazer! Quem tem prazer em correr, caminhar ou praticar desporto, consegue reequilibrar alguns excessos de mesa fazendo exercício.

No prazer do sexo, a culpa tem também tendência a estar presente, e, mais uma vez, onde há culpa não há possibilidade de usufruto pleno de prazer. A sexualidade bem vivida é das melhores e maiores fontes de prazer e bem-estar, e um excelente exercício físico, mas tal como noutros campos, a ansiedade e a incapacidade de viver o momento com a vulnerabilidade e intimidade necessárias, podem levar, ou ao não-prazer, ou à necessidade de procurar intensificar o prazer de modos menos saudáveis (por exemplo recorrendo ao uso de substâncias tóxicas duma forma sistemática, ou quase). Esta estratégia surge numa tentativa de abrilhantar sensações que se vão sentindo como mais pálidas e a escoar por entre os dedos, porque se está a procurar no sexo o que ele não pode dar só por si, falo de verdadeiro envolvimento afetivo com os outros e com a vida. É também verdade que nalguns casos o sexo é uma ótima ajuda para uma maior aproximação, motivação e gratificação, uma vez que gera prazer, no entanto, em situações em que a actividade sexual tenta substituir outras necessidades, pode criar frustração e um vazio ainda maior.

Mas, para além de comida e sexo, há muitíssimos outros prazeres. Temos tendência a esquecer o mais importante: O prazer das pequenas coisas, que não envolvem consumos, nem excessos.

Aquele prazer que temos em dar, em partilhar, em descobrir, em observar, em cheirar, em escutar, em acariciar, em conviver, em sorrir, em abraçar, em partir, em chegar, em relacionar, em planear, em realizar (construir, esculpir, cozinhar, dançar, cantar, tocar, pintar, bordar, aprender, escrever, etc, etc, etc), ou seja em toda uma série de atividades que estão, ou podem estar, presentes no nosso dia-a-dia, se não andarmos em correrias e tensões constantes, querendo chegar a uma qualquer meta, esquecendo tudo o que está no caminho, como se fossem apenas obstáculos e não partes, também necessárias (e por vezes até essenciais), da vida.

É desta forma que tantas vezes deixamos escapar momentos (e até entes queridos), sem os notar, sem permitir que os nossos olhos “retinem”, que os nossos sentidos absorvam, sem permitir que a memória os retenha e lhes dê significado, sem nos ligarmos afetivamente e realmente.

E, no entanto, é conseguindo saborear esses pequenos prazeres da vida, que podemos aumentar a nossa coleção de momentos de felicidade que nos podem proporcionar uma incrível sensação de bem-estar e nos ligam mais profundamente aos outros e à vida.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Sobre o Ciúme

“ – Senhor, cuidado com o Ciúme. É um monstro de olhos verdes, que escarnece da carne de que se alimenta.”

William Shakespeare (in Othello, 3º acto; Iago dirigindo-se a Otelo)

 

Quando falamos de ciúme, ocorre-nos provavelmente, em primeiro lugar, a sua expressão nas relações amorosas, mas podemos encontra-lo em relações fraternais face ao amor/atenção dos pais/cuidadores, entre amigos face a um outro amigo, tido, por qualquer razão, como especial, ou entre colegas em relação a professores, chefias, etc.

Descartes, distinguia entre “ciúme bom” -cuidador, protector- e “ciúme mau” – amor errado, má opinião de si ou do outro-.

Permito-me agarrar naquilo a que Descartes chama “ciúme bom”, e considera-lo uma parte do amor que cuida e protege o ser amado não desejando perdê-lo. Essa parte é de facto amor, quando adaptada à situação e à idade (não se protege e cuida da mesma forma um bebé, uma criança, um adolescente ou um adulto, nem se cuida ou protege nenhum deles sempre da mesma forma), porém, quando se protege e cuida duma forma desadequada, (uma forma que não tem a ver com as necessidades do outro, mas com as do próprio) aí encontramos o “não amar da maneira certa”. O sentimento de posse e o medo de perda tornam-se superiores ao gesto de cuidar e proteger restringindo as necessidades e vontade do outro.

Olhemos para o ciúme como uma reacção complexa a uma ameaça (real ou imaginada) a uma relação de apego diádica que se valoriza. A ameaça é vista como algo ou alguém (rival) que interfere nessa relação.

A reacção que o ciúme gera, envolve emoções complexas, de frustração (um misto de tristeza, zanga e medo) que pode levar à angústia, à raiva e à vergonha por se antever ou imaginar que se perde a “relação de primazia” com o ser (objectificado, porque não livre) que se deseja seu.

Percebemos assim que o ciúme se relaciona sobretudo com o sentimento de posse de alguém de quem o ciumento necessita para ser preferido, para ser amado (já que o próprio não consegue fazê-lo), e não com o amor ao outro ou do outro enquanto livre escolha (já que o próprio receia que ele/ela não o faça, se não for preso/controlado).

“Má opinião de si” dizia Descartes, (Freud falava de “ferida narcísica”), pensemos em termos de um processo de vinculação parental que não foi suficientemente segura durante a infância e que conduziu a uma baixa autoestima, contribuindo para as dificuldades ao nível da maturação emocional e da concepção de si como ser autónomo e “amável” (passível de ser amado). Podemos imaginar que quanto menos segura foi essa vinculação, mais o ciúme pode ter tendência a ser patológico, procurando obcessivamente certificar-se de um apego que paranoicamente vigia, podendo, com isso, acabar por destrui-lo, reconfirmando então os sentimentos de impossibilidade de ser amado e perpetuando o ciclo.

Retomando a citação de Shakespeare, diria que todos nós podemos conviver facilmente com um sorriso de olhos verdes que nos pisca o olho, de vez em quando, de dentro do nosso bolso, alertando-nos para a nossa vulnerabilidade, receios, desejos, ilusões e mágoas, a que talvez devêssemos prestar mais atenção para melhor nos conhecermos. O problema agrava-se quando o sorriso se fecha, nos escapa do bolso e começa a degradar a nossa relação. E pior será, quando o monstro, que se alimenta de quem o alimenta, crescer e atingir proporções que poderão ter terríveis consequências. (Otelo mata a sua mulher, Desdémona)

Quando o ciúme se torna monstro chamamos-lhe patológico, há desconfiança constante, agressão verbal e compulsão a verificar as acções do/a parceiro/a (escutar conversas, ver mensagens e e-mails, ou mesmo segui-lo/la). Curiosamente, estas tentativas de aliviar o desconforto, não só não resultam porque não são duráveis, como têm tendência a agravar-se podendo desembocar em situações de delírio, em que a interpretação da realidade é feita através dos receios do próprio e de imagens, que fantasia e projecta, antecipando-as ou vivendo-as como reais. Estas interpretações delirantes podem levar a conclusões erradas e a acções desastrosas, uma vez que as crenças sobre o que se está a passar não são permeáveis à testagem da realidade. Estes casos, para além de intervenção psicoterapêutica, necessitam de intervenção psiquiátrica, em muitas situações com caracter urgente.

Não nos iludamos; jamais o ciúme poderá ser prova ou resultado de muito amar. É sim, o medo desesperante de abandono, de vazio, de impossibilidade de ser, perante a perda da posse, da exclusividade ou da primazia de quem queremos que nos ame, porque nós não aprendemos a fazê-lo e não acreditamos que alguém o possa fazer, se não estiver sob a nossa vigilância e controlo. Assim… seremos também incapazes de saber amar um outro ser livre. A Corrosão seguirá o seu ciclo, como diz o poeta, “escarnecendo da carne de que se alimenta”

 Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Somos como somos ou podemos mudar?

Somos como somos E podemos mudar.

Somos? ou vamos Sendo?

Somos E vamos Sendo.

Somos um conjunto de aspectos mais ou menos estruturais, comuns a uma espécie, a uma génese, a uma herança genética e cultural/ambiental.

E

Vamos Sendo um conjunto de processos dinâmicos, dialeticos de interacções constantes com o meio em que estamos inseridos (afectivo/relacional, social, cultural). que interaje constantemente com os traços próprios de quem somos e de quem nos vamos construindo.

Somos uma obra única e em constante mutação, que, à medida que se vai desenvolvendo vai acrescentando novos materiais, uns por necessidade, outros porque se nos colam… E, outras vezes vai prescindindo de materiais iniciais, uns porque já não fazem falta, outros por que nos foram sonegados. Há assim potencializações e despotencializações constantes, que afectam o nosso processo de auto-construção e dos quais nem sempre estamos conscientes.

Independentemente do que somos e trazemos connosco à nascença, tudo o que vamos sendo depende da nossa interacção com todos e tudo o que nos rodeia. Essas tensões e distensões provocadas pelas diversas forças que operam no processo de auto-construção nem sempre são claras ou lógicas, e muitas vezaes são contraditórias e causam sofrimento. São fruto de inúmeros e complexos processos Psicológicos.

A escuta das nossas emoções primárias (surpresa, medo, zanga, tristeza, alegria, nojo) e a atenção ao diálogo que estabelecemos com elas (ou que outros estabeleceram com elas) e ao que conduziram secundariamente, são essenciais para nos podemos compreender e construir de forma equilibrada e satisfatória.

A desregulação emocional não está na desordem/desequilíbrio ocasional, que faz parte do processo dinâmico dialético que é a vida, e que ocasionalmente, nos é tão necessária para uma reordenação e reorganização interna, mas apenas em traços extremos, inadaptativos, inflexíveis e/ou causando sofrimento contínuo, que impedem o reencontro com o equilíbrio.

O que fomos absorvendo, o que se nos foi “colando” e o que fomos prescindindo, sem querermos, sem nos apercebermos, ou, porque nos foi útil/inútil em determinada altura, deve ir sendo filtrado ou recuperado, para podermos tomar posse de quem vamos sendo, de uma forma mais consciente e livre, pois afinal, somos o que somos, em constante mutação e somos possuidores de um enorme potencial de mudança e adaptação.

A responsabilidade de sermos livres e nos sentirmos realizados é nossa. Contudo, esta tarefa nem sempre é fácil e é natural que requeira ajuda profissional num momento ou noutro das nossas vidas. Ir esculpindo o nosso Ser é obra nossa.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

Aceitação, uma palavra complexa

Aceitação

Aceitação, uma palavra que merece a nossa atenção nesta época de balanços de final de ano e planos para o Ano Novo.

As várias ciências e disciplinas têm um vocabulário que lhes é próprio. Quando o vocabulário não faz parte da linguagem comum, é mais fácil perceber que estamos perante uma linguagem técnica, mas quando são utilizadas palavras que fazem parte do léxico de todos nós, as interpretações tornam-se mais confusas. Tomemos por exemplo a palavra “positivo”, tantas vezes utilizada na linguagem vulgar, para designar algo de bom, mas cujo significado em ciência é apenas o de: estar presente, existir, poder assinalar-se.

Sabemos o quanto um resultado “positivo” numa análise laboratorial, pode revelar-se negativo para o nosso bem-estar…, mas pode também revelar-se positivo, dependendo de a que é que se refere a “positividade”

Em Psicologia, tal como noutras ciências ou áreas específicas do Saber, encontramos muitas palavras que são utilizadas na linguagem comum, mas que se revestem de um significado mais restrito e específico, ou mesmo diferente no âmbito dessa área.

Actualmente ouvimos cada vez mais a palavra “aceitação”.

 “Aceitarmo-nos a nós próprios”; “aceitarmos os outros” “aceitarmos a vida e as suas vicissitudes” “aceitarmos incondicionalmente os nossos filhos”…

Mas o que significa em termos psicológicos de facto “aceitar”?

“Aceitar” significa simplesmente não negar a existência e encarar com verdade o que é, e o que está, englobando essa realidade.

Aceitação não significa aprovação, consentimento ou resignação a essa mesma realidade, isto é, não implica qualquer tipo de aquiescência, abdicação ou renúncia. Implica, isso sim, aceitar a realidade da existência, de forma a podermos responsabilizar-nos por esse facto, conhecimento, ou constatação.

Aceitação é mesmo o primeiro passo para se poder escolher mudar, ou não, o que está e o que é, quando tal é possível, e pacificarmo-nos quando não o é.

Aceitação é sentir e perceber que os outros são o que são e que não podemos querer que eles sejam como nós desejaríamos que fossem

Aceitação é, neste sentido, o contrário de negação. Ao que é negado não é reconhecida existência, logo não fica ao alcance do nosso pensamento ou acção.

Para que possamos pensar sobre, agir, transformar, incorporar, lutar, pacificar, necessitamos em primeiro lugar de aceitar a existência duma determinada realidade, facto, emoção, pensamento.

É apenas a partir dessa plena aceitação e fruto dela, que podemos conscientemente decidir o que fazer.

Olhemos para a realidade do dia a dia:

Se não aceitarmos que estamos doentes, não faremos nada para nos tratar.

Se não aceitamos que alguém legislou mal, não podemos lutar para que legisle bem,

Se não aceitarmos que os nossos filhos precisam de ajuda especializada, não a procuraremos nem os ajudaremos

Se não aceitarmos que os outros são como são, não podemos amá-los incondicionalmente ou afastarmo-nos e protegermo-nos dos seus abusos.

Se não aceitarmos que vida pode ser injusta, nada faremos para que seja mais justa,

Se não aceitarmos a morte como inevitável, não viveremos a vida plenamente.

O mesmo se passa com a nossa realidade interna:

Quando negamos e evitamos as nossas próprias emoções e pensamentos, estamos a impedir-nos de aceitá-los, logo estamos a impedir-nos de agir sobre eles.

Acontece que todos nós temos tendência para negar e/ou evitar o que é desconfortável e doloroso, mas ao fazê-lo, estamos a negar-nos a possibilidade de qualquer mudança. Ficamos pois, cativos da dor, da zanga, da frustração ou da resignação, que nada tem que ver com aceitação.

Aceitar profundamente o que não pode ser mudado é também um passo para a sabedoria de perceber a diferença entre o que pode e não pode ser mudado

(tal como nos recomenda a Oração da Sabedoria)

Nesta época de planos e esperança num novo ano, talvez possamos começar por escutar e olhar a nossa realidade e abraçá-la aceitando-a pelo que é. Por vezes, esta aceitação é o ponto de chegada de que necessitamos para fazer face a determinadas realidades que não podemos controlar e que estão fora da nossa vontade ou acção. Outras vezes, a aceitação é simplesmente o ponto de partida para podermos alterar, transformar, evoluir.

A aceitação plena é uma libertação e, como tal, permite mais escolhas, tomadas de decisão e um maior grau de satisfação connosco e com a vida.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Quando a resposta é: “Não sei”

Quando a resposta é não sei

Em psicoterapia, ao colocar uma determinada questão a um paciente, deparamo-nos muitas vezes com a resposta: “Não sei”. Até certo ponto, costumo olhar para este “não sei” como se estivesse perante um silêncio, em que me pergunto: “Será um silêncio cheio? ou um silêncio vazio?”. Da mesma forma me interrogo sobre se estarei face a um “não sei” cheio de sabedoria ou a um “não sei” oco ou temeroso.

O “não sei” interpõe uma distância cognitiva entre a pessoa e a possibilidade de saber/conhecer, isto é, entre o Eu e a responsabilidade de reflectir e construir um significado/solução. Mas interpõe também, uma barreira afectiva entre o Eu e a possibilidade de sentir. De sentir algo, tantas vezes doloroso, em que se receia/recusa mergulhar.

Ao terapeuta cabe perceber se está perante uma resposta de zanga, de medo, de vergonha, ou de admiração, face a uma questão que foi percebida como intrusiva, dolorosa, ou desafiante. Poderá ser uma resposta que exprime um conflito entre o desejo e o receio de saber ou expressar, ou mesmo de tornar consciente o que de certa forma já foi pressentido.                                                                                 Contudo, como sabemos, por vezes “não sei” é apenas “não sei”.

Em vez de se olhar o “não sei” exclusivamente como algo que se fecha, podemos vê-lo como algo que se abre. Primeiro teremos de bater à porta, entreabrindo-a, como que a pedir licença para entrar, sabendo que nos temos que mostrar dignos de confiança e validar esse depósito. E finalmente utilizar essa porta como passagem comunicativa por ambos aceite. Afinal, “não saber” é a primeira condição para a investigação e a aprendizagem. Há que mobilizar o potencial do “não sei” para a vontade de saber. Oferecer hipotéticas interpretações é uma possibilidade, mas deve ser feita com as devidas cautelas, sendo uma delas a clara admissão de que Eu não sou Tu. O terapeuta não pode aceder ao mundo interno do paciente se este não lho facultar, nem julgar-se sabedor do que não sabe.

Talvez antes de nos precipitarmos na sugestão de interpretações possamos explorar o âmbito do “não sei” e esperar…

Estará o paciente a dizer-nos:

1- “Não Sei!” (nem quero saber e não estou interessado no tema)?, Ou

2-“nãao ssei…”, (mas isso faz-me lembrar, sentir, pensar…)?, Ou

3- “não sei?” (que curioso nunca tinha pensado nisso, acha mesmo que eu poderei saber?)? Ou

4-“não sei”, quase inaudível (penso que sei, mas ir por aí causa-me dor…)?, ou

5-“não sei…” (talvez saiba, mas se eu ousasse dizer, o que iria pensar de mim ou dos meus?)?, ou

6-“não Sei” (sei, mas não confio o suficiente para dizer)?

O primeiro “Não Sei!” é uma porta que se fecha, com alguma zanga. É claramente uma defesa, vinda dum local de medo ou de negação. Indica que é cedo para ir por aí, a questão é sentida como intrusiva.

O segundo e o terceiro “não sei” estão cheios de potencial, e são uma porta entreaberta que suscita a curiosidade, (embora possam não estar isentos de receio) o primeiro destes dois, “nãao ssei…”, sendo mais introspetivo, convida a um silêncio do terapeuta, que ao criar espaço, permite a viagem interior do paciente. O segundo “não sei?” talvez necessite de um ligeiro encorajamento por parte do terapeuta, por exemplo, um sorriso de assentimento, permitindo depois que o silêncio se instale e possibilite a reflexão e elaboração do cliente.

O quarto “não sei”, parece extremamente vulnerável e necessita de validação empática pelo receio da dor que possa causar o que se venha a descobrir. Neste ponto, é fundamental que o terapeuta mostre reconhecer e valide as partes do Eu em conflito interno.

Os dois últimos “não sei” parecem indicar um conflito entre a vontade de abordar o tema e o receio de o fazer. São um sinal de que a relação terapêutica ainda não é sentida como verdadeiramente segura. Apontam para a necessidade de trabalhar e aprofundar a relação antes de prosseguir.

A confirmar este tactear e sentir do terapeuta, e a importância da sua responsividade mediante o que avalia, temos o facto de a neurociência nos mostrar que a visão de soluções para os problemas parece dar-se quando a parte direita do cérebro trabalha activamente e o lado esquerdo fica mais em repouso, deixando de prestar demasiada atenção aos estímulos externos, sobretudo aos visuais.

Assim, quando presenciamos um “não sei”, qualquer que ele seja, a nossa atenção deve focar-se na entoação e nas pistas não-verbais. Se o “não sei” é acompanhado de um olhar vago, que se afasta do nosso e paira no vazio, podemos ver aí uma oportunidade de não dizermos nada e de deixar que o cliente entre no seu mundo emocional. Se esse encontro for produtivo, poderemos observar uma reação emocional, ou, pode acontecer que o hemisfério esquerdo se active indo em “socorro” do direito, tentando dar sentido à recente sensação. Aqui, o contacto visual e a comunicação verbal serão então restabelecidas e é provável que assistamos a um momento de descoberta, ou, pelo menos, ao abrir claro da porta.

Ao escutarmos “não sei”, teremos muitas vezes que tomar decisões rápidas sobre o que fazer (ou não fazer). Se estiverem reunidas as condições para que a melhor acção seja o silêncio, o terapeuta deve respeitá-lo, permitindo ao cliente encontrar-se com ele próprio e descobrir (-se) sentindo-se acompanhado e seguro nessa viagem.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

E Quando a Idade Avança?

O envelhecimento é um processo normal, universal, gradual e irreversível que envolve transformações ao nível biológico, psicológico e social.

Sabemos que há factores de predisposição genética que podem conduzir a uma demência mais ou menos precoce. Sabemos também que o declínio e a morte são inevitáveis, mas lutar e resistir é possível, bem como aprender a aceitar as perdas inerentes ao processo de envelhecimento.

Em determinadas situações, e em idades mais avançadas, a acumulação de limitações físicas e cognitivas diminui substancialmente a eficácia de estratégias compensatórias. Contudo, as intervenções dirigidas a, pelo menos, uma limitação, ou tendo em vista o impedimento da acumulação de fatores de risco, podem reduzir a velocidade do processo e o risco de institucionalização. De facto, parece haver uma convergência entre os investigadores, no sentido de procurar manter as pessoas idosas o mais tempo possível no seu ambiente preferencial, apoiadas por equipas multidisciplinares, com o intuito de lhes serem garantidas condições de autonomia. Há, no entanto, situações em que tal se torna impossível. Quando surge, então, um estado dedependência, caracterizado pela impossibilidade da pessoa manter a sua funcionalidade sem ajuda, e não havendo alternativas, poderá tornar-se necessária a institucionalização. As Instituições têm o dever de considerar o utente como prioridade e centro da mudança institucional, devendo ser a própria instituição a adaptar-se às necessidades dos seus clientes, numa perspetiva de preservar e recuperar capacidades e manter o bem-estar físico e psicológico durante o maior tempo possível, (nomeadamente através de programas específicos) respeitando as necessidades físicas e afectivas dos utentes.

Convém recordar que o ser humano é extremamente adaptável e que se essa adaptabilidade não lhe for solicitada, atrofia.

Assim, o melhor exercício é o da própria actividade cerebral, numa visão de que “a ampla utilização garante ampla funcionalidade”. Isto não significa que os meros exercícios de estimulação cognitiva, à semelhança dos exercícios físicos localizados, conduzam a essa ampla funcionalidade, uma vez que exercícios específicos para áreas isoladas, dificilmente podem ser transferidos para outras, pelo que será a diversidade da estimulação que ajudará a plasticidade neuronal.

“A função faz o órgão.” “Usa-se ou perde-se.”

Numa fase precoce da velhice, e em situações em que esta ainda não se faz acompanhar de dependência e em que a escolha autónoma é possível, o acompanhamento psicológico é de grande mais-valia. Se houver dificuldade em pensar em termos de uma Psicoterapia que conduza a grandes mudanças estruturais e comportamentais, pode-se com certeza pensar num processo facilitador da atribuição de novos significados e que conduza a novos esquemas e a processos de assimilação e acomodação mais adaptativos, promovendo assim, novas representações internas que ajudam a uma melhor aceitação da realidade presente e, que ao mesmo tempo, favorecem a emergência de novas redes de conexões neuronais. Todos estes processos podem desempenhar um papel importante na melhoria e/ou manutenção de bem-estar, através de uma maior pacificação consigo e com os outros. Certo é, que a investigação tem mostrado que se envelhece e morre melhor quando se vive melhor.

Quando a idade avança, é possível uma intervenção psicoterapêutica que possibilite novas interpretações e simbolizações sobre as inúmeras narrativas e vivências que se foram acumulando ao longo da vida, e que possibilite ainda, revisitar afectos, activar memórias gratificantes e experienciar emoções que ajudem a enriquecer e reflorescer o momento presente. É pois, possível e desejável investir num processo que vale a pena.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Mitos e Realidades nas Relações de Casal

Mitos e real rel a 2

Há já alguns anos, Albert Ellis, colocou uma questão interessante: Porque haveria de ser o casamento, uma relação ideal? Lembrava ele então que essa relação é constituída pelas duas pessoas que mais partilham o tempo, que mais se expõem uma à outra, que mais mostram o seu lado negativo uma à outra e entre as quais o fingimento é mais difícil.

            Partindo destes factos, é fácil perceber que a relação a dois é simultaneamente uma relação potencialmente geradora de conflitos e potencialmente geradora de um alto grau de intimidade, aceitação e partilha. Assim sendo, teoricamente, se reduzirmos o potencial para a existência de conflito, juntamente com o aumento de estratégias para a sua resolução e se ao mesmo tempo aumentarmos o potencial de intimidade, aceitação e partilha, poderemos considerar-nos no bom caminho para uma relação estável de bem-estar a dois.

            Como nos diz John Gottman, existem dois tipos de problemas: os que têm solução e os que não têm solução. Tentar evitar o conflito não resolvendo os primeiros, ou entrar em conflito constante por causa dos segundos, é sem dúvida contribuir para uma relação problemática e desgastante.

            No caso dos problemas com solução, (Natal-casa dos pais ou dos sogros? Dinheiro-obras ou carro novo? Filhos-escola pública ou privada? Etc.) o diálogo, a exposição da visão pessoal de cada um, e a compreensão do ponto de vista do outro, são aspectos essenciais para encontrar uma solução, que, podendo não ser a preferida, pode ser bem aceite por ambos. Nos chamados problemas sem solução (religião/clube/partido, projecto de vida pessoal, incompatibilidades várias) o caminho passa por definir se a questão é fundamental ou não para a continuação da relação (como pode ser o caso, por exemplo, quando um deseja ter filhos e o outro não) ou, se é uma questão não fundamental em que será necessário identificar esperanças, aspirações, desejos e sentimentos, negociando a acção, aceitando a diferença e concordando em discordar.

            Acontece, porém, que não estamos a resolver conflitos com um sócio, com um colega de trabalho, nem com um amigo, estamos a resolver (ou não) conflitos com a pessoa que escolhemos para partilhar a nossa vida, a pessoa em quem mais confiamos e a quem mais estamos ligados afectivamente, e isto, por paradoxal que possa parecer, pode dificultar, e não facilitar, a resolução, pois o envolvimento emocional é muito grande.

            Leslie Greenberg e Sue Johnson mostram-nos como em todo este processo, as emoções de cada um, a forma como se interrelacionam com as do outro e o tipo de ciclos (funcionais ou disfuncionais) que criam, são a chave quer para o sucesso quer para o insucesso da discussão.

            Cada membro do casal traz consigo as experiências aprendidas na família de origem, quadro essencial para perceber as representações e interiorizações diferentes que cada um pode fazer sobre um mesmo acontecimento ou situação. John Bowlby e Mary Ainsworth chamaram a atenção para o tipo de vinculação -segura/insegura (ansiosa ou evitante) – que cada um estabeleceu com os seus pais ou cuidadores na infância e para a importância central que este desempenha (por imitação ou por oposição, consciente ou inconsciente), não só na escolha do parceiro, como também no modo como o casal comunica e se relaciona.

            Ambos possuem uma bagagem muito pessoal e com alta carga emocional, cabe a cada um percebê-la e, até certo ponto, tentar perceber a do outro, de modo a que não se sinta “atacado”, nem se deixe “atacar”, por problemas que pertencem à vivência/experiência precoce do outro, mas ao mesmo tempo consigam alargar a sua própria experiência emocional através da experiência do outro. Talvez a forma mais simultaneamente aberta, em tom de dádiva, e envolvente, em tom de aconchego, de chegar ao parceiro, seja tentar sentir as suas experiências precoces – lá onde você não esteve e não viveu. Para tal, é necessária uma partilha mútua de vivências e sentimentos, o que, por um lado implica confiança e aceitação de vulnerabilidade, e por outro lado, possibilita o desenvolvimento pessoal, a reparação e o fortalecimento de ciclos funcionais de ligação e comunicação que contribuem para a aproximação e crescimento do casal.

            Ao longo de anos de investigação sobre casais e sobre o que funciona e não funciona nos seus relacionamentos, foram sendo encontradas algumas constantes nas relações felizes e alguns mitos que contribuem para relações infelizes. Há mitos de épocas distantes ainda presentes, embora por vezes de forma menos consciente, que continuam a causar dano; outros são mais actuais e muitas vezes divulgados como soluções, quando mais não são do que agravantes.

Alguns dos mitos mais nocivos para uma relação a dois:

  • O casamento traz a felicidade e preenche todos os meus sonhos
  • Os membros do casal não devem ter interesses ou amizades individuais
  • Uma relação extraconjugal salva o casamento ou estimula-o
  • Uma relação extraconjugal destrói um casamento
  • Os bons maridos fazem reparações em casa e/ou as boas mulheres tratam da comida e da roupa
  • A ambição de um vem antes da carreira do outro
  • Os verdadeiros amantes conhecem-se automaticamente um ao outro e sabem o que o outro está a pensar, mesmo sem falarem
  • Os bons esposos devem satisfazer todas as necessidades do parceiro
  • A competição entre o casal acrescenta encanto ao casamento
  • O casal deve ser uma sociedade de 50%+50%
  • Os casais felizes não discutem
  • Os casais não devem revelar assuntos pessoais a terceiros
  • Um é melhor do que o outro, ama mais, luta mais pela relação
  • Um casamento infeliz é preferível a um lar desfeito
  • Se o seu parceiro quer terminar a relação, lute por ela
  • Ter um filho melhorará o casamento

Alguns pontos comuns às relações mais satisfatórias

  •  Envolvem-se com prazer na construção da vida a dois
  •  Não dizem Sim, quando na verdade querem dizer Não
  •  Evitam criticar e culpabilizar o outro, mas expõem claramente o  que estão a sentir
  •  Cooperam, em vez de competir, tentando chegar a soluções  satisfatórias para ambos
  •  Exprimem opiniões e deixam-se também influenciar pelo    parceiro
  •  Tomam consciência das suas emoções e sentimentos e  procuram compreender as do parceiro, não responsabilizando o  outro, pelo que só ao próprio diz respeito
  •  Evitam que uma zanga se torne mais do que isso, voltando-se  um para o outro em vez de ficarem de costas voltadas
  •  Evitam a mentira. Quando sentem necessidade de mentir,  perguntam-se porquê, e resolvem. A mentira conduz à  desconfiança
  •  Encorajam o outro a alcançar os seus objectivos pessoais e      potencializam o que cada um tem de melhor
  •  Criam e desfrutam momentos a dois partilhando algumas tarefas e actividades de prazer
  •  Sabem esquecer e perdoar
  •  Reconhecem e aceitam os seus defeitos e vulnerabilidades assim como os do parceiro
  •  Valorizam os pontos fortes do parceiro
  •  Partilham significados e piadas privadas e cultivam o sentido de humor
  •  Interessam-se pelo dia a dia e pelo trabalho do outro e trocam ideias e experiências
  • Alimentam o afecto e a admiração, (por exemplo, trocam mensagens amorosas)

            Para que ambos se sintam bem na relação é fundamental que cada um se sinta bem consigo. A forma mais inteira de poder amar e ser amado dum modo saudável e gratificante, é que cada um saiba aceitar-se, respeitar-se e amar-se, tendo consciência de si e de quem é.

            Ambos terão necessidade de se sentir aceites, autorizados, e alvos de apreço, atenção e afecto; ambos necessitam de se sentir simultaneamente livres e comprometidos. No entanto, estas necessidades nem sempre estão presentes em ambos os parceiros com o mesmo nível de intensidade e podem variar ao longo do tempo, embora não necessariamente ao mesmo tempo e da mesma forma (o que para um é demais, pode ser para o outro apenas o suficiente, o que numa altura é essencial, noutras é dispensável). É necessário olhar para as necessidades que cada um sente em cada momento, saber comunicá-las e, quando possível, conciliá-las, ou, aceitar – sem ressentimento – prescindir; quando tal não é possível, deixar que o outro as satisfaça de outra forma; afinal, amar é isso mesmo, é aceitar a diferença e deixar ser.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Desequilibradamente normal… como a torre de Pisa.

pisa

I

VÔO ONÍRICO

«Estou num hall circular rodeado de portas. Numa delas lê-se: Departamento de ESTATÍSTICA. Entro. Vejo linhas e gráficos, distribuições de indivíduos, a maior parte representada pela mesma cor, e uns quantos por cores diferentes, a maioria não é de raça branca, a maioria está mal alimentada e em extrema pobreza, a maioria tem muitas crianças que morrem. Estará a maioria da população aqui representada? A maioria será o “normal”? Isto será o “equilíbrio”? Sinto um nó no estômago, não aguento estar mais aqui.

De novo no hall, dirijo-me para outra porta. Nesta está escrito: Departamento de MEDICINA. Entro num espaço vazio, não consigo agarrar nada, parece uma câmara de despressurização, o mundo da ausência… Claro! Ambiente esterilizado, ausência de doença. Será isto a normalidade? Avanço mais um pouco e vejo duas setas, uma para a direita indica: Patologia –presença de doença ou sintomas, vou dar uma espreitadela… Parece que cheguei a uma “farmoteca”, (ou a uma “bibliofarma” –como preferirem) alinham-se prateleiras e mais prateleiras com livros e caixas, tudo numa invejável organização, e ainda mapas com taxonomias e fichas dicotómicas.. Reparo numa espécie de guarda-vento: Terapêuticas Estruturais; não resisto a espreitar pelo vidro: dum lado alinham-se instrumentos cirúrgicos, do outro uma panóplia de tubos de ensaio e canalizações de vidro com neurotransmissores a subir e a descer. Ao fundo da sala outro guarda- vento diz Gabinete de Genética. Volto ao local onde estavam as duas setas, a que apontava para o lado esquerdo dizia: Saúde. Ummm… Saúde – “Estado completo de bem-estar físico mental e social” – Será que podemos considerar que normalidade, equilíbrio e saúde (mental) são sinónimos? Curioso, aqui há outro acesso ao Gabinete de Genética e ainda um guichet onde se lê: Política Educativa e Socio-Económica.

   Enquanto penso neste assunto, saio do… hospital (era o que parecia) e regresso ao hall circular, transponho outra porta, Departamento da CULTURA. À minha frente está um quadro onde leio: “Visitei uma terra onde as pessoas punham paus com cerdas na boca e faziam sons estranhos com a garganta como se estivessem a espantar espíritos, depois cuspiam uma espuma e quando acabavam pareciam estar felizes” Que povo e que ritual excêntrico seria este? Reparo numas letras mais pequenas e curvo-me para ler: “Excerto da descrição dum aborígene do comportamento -lavar os dentes – “. Na minha mente surgem pequenos “post-it(s)”: “preconceito”, “avaliação descontextualizada”, e ainda um outro: Será o conceito de normalidade transcultural”? Só fará sentido se for!

Mais uma vez estou no hall, olho à procura de outra entrada, ali está. Nesta porta bem esculpida e trabalhada está escrito: Departamento de PROCESSOS PSICOLÓGICOS. Parece que entrei num coliseu. Uma série de equilibristas treinam, num ambiente quase circense. Não percebo qual é a pista desta porta, mas deve ter alguma…esta viagem deve ter um padrão. Penso…. Nome da porta: Departamento de Processos psicológicos… olho em volta e há várias outras portas iluminadas por entre as bancadas, posso ler junto do foco de luz o nome de algumas: Cognitivos, afetivos (vinculação), Inconscientes, de Aprendizagem, de Desenvolvimento, Estruturais… aãã? Processos estruturais? Esta porta parece-me deslocada…, talvez não, poderão os processos ser independentes da estrutura? Talvez esta porta dê também acesso à sala de genética do hospital, afinal olhando a patologia como um ponto de desembarque de causas próximas e remotas, de diátese e de stress… de vulnerabilidade e resiliência…um processo contínuo de interação entre bioquímico e ambiental, externo e interno…  Para!  Volta a concentra-te no que vês na arena central! Observo: As pessoas caem, tentam o reequilíbrio, umas vezes quase paradas outras vezes andando ou socorrendo-se de um parceiro ou de uma vara, e quando finalmente conseguem, sorriem…Sim, é isso, a normalidade enquanto processo interactivo entre o indivíduo e o meio, numa tentativa constante de equilíbrio. Uma normalidade que não é um dado adquirido, é conquistada ao longo do tempo e é conseguida num diálogo entre mudança e estabilidade, desequilíbrio e equilíbrio. Será então normalidade a possibilidade de dançar entre equilíbrio e desequilíbrio gerando bem-estar?. A facilidade em encontrar esse ponto estaria na estrutura, (diátese) a habilidade para manter, perder e readquirir esse ponto, estaria nos condicionamentos do meio (stress) e nos processos…

Ansiosamente regresso ao hall, há ainda mais portas, estou cansada, mas quero entrar numa que me pareceu de sonho. Onde era? Que dizia? Cá está ela: Departamento Utópico. Entro. Num dos cantos está uma fonte com água límpida onde, para além da minha imagem reflectida, cintilam moedas. Devo estar na fonte dos desejos. Desejos de felicidade. Vejo o reflexo na água que nunca se agarra, o brilho quimérico das moedas… e no entanto esta é a mais bela sala que visitei, parece uma galeria de arte com sonoridades celestiais…a sala do almejar… e contudo… há algo que falta.  Será a felicidade uma utopia? Deito uma moeda na fonte e a minha imagem reflectida na água movimenta-se. É isso, movimento! A única sala em que havia Vida era a anterior, a sala do Departamento de Processos Psicológicos. Parece-me ainda ouvir o eco “dança geradora de bem-estar”,

Regresso ao hall.  O sol, espraiando-se no vitral da abóbada da Torre das Portas aquece-me, quase me cega e… acordo»

II

OLHAR VIGIL

Olhemos então para a “normalidade” tentando defini-la pela positiva e enquanto conceito que deve ser transcultural, incluir aspectos estruturais (ser)(traços) e processuais (motivacionais, estar a ser, ir sendo) (dimensões), dinâmica (ir sendo com, e transformando-se a partir de, num processo de transferência,), dialéctica (em movimento constante com avanços e recuos, equilíbrios e desequilíbrios), desenvolvimentista (características sociais, educativas relacionais, auto conhecimento, etapas e fases) incluir o que o próprio sente,  reflecte e observa sobre si e os outros, e o que os outros observam, sentem e reflectem sobre ele.

A desordem não está no desequilíbrio ocasional, que faz parte do processo dinâmico dialético que é a vida, mas apenas em traços extremos, inadaptativos, inflexíveis e/ou causando sofrimento, que impedem o reencontro com o equilíbrio.

Talvez possamos dizer que a noção de normalidade, enquanto torre vertical, deve ser entendida, como mero constructo teórico, utópico, uma vez que, as várias funções (ou necessidades/identidade/ níveis/traços – dependendo dos autores -) não necessitam de um equilíbrio vertical (tal como a Torre de Pisa), nem estático, mas tão só de um equilíbrio, que mantenha intercepções (pontos de equilíbrio) de vários (factores, funções, dimensões etc.,)  ou seja sem desregulações ou disrupções do processo de desenvolvimento individual e inter-relacional.

A normalidade estará então na possibilidade e capacidade de (re)encontrar (ir encontrando) um ponto (sucessivos pontos) de equilíbrio gerador(es) de bem-estar, capaz(es) de satisfazer as necessidades do próprio concomitantemente com as necessidades do meio ao longo das várias fases da vida.

Todos nós temos a riqueza e a raridade da Torre de Pisa, variamos no grau de inclinação, no lado, na exposição solar, na ornamentação, no estilo, etc. Esse facto, dá-nos a nossa individualidade. O nosso bem-estar reside na capacidade de convivermos com essa individualidade de forma saudável, mais do que na tentativa desesperada de “sermos direitos”, de “sermos como os outros”, ou de “sermos como um (qualquer utópico) modelo”. O nosso bem-estar reside também na capacidade de evitarmos o desmoronamento, reconhecendo os exageros prolongados e a rigidez, que poderão estar a impedir o reequilíbrio. Saber viver connosco e com os outros, eis a dança mais desafiante e fantástica da vida.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Equilibradamente em desequilíbrio

equ inst

Sometimes to loose balance is part of living a balanced life.

Quando pensamos no que é que queremos para a nossa vida, do que é que precisamos para a nossa saúde mental, cada vez mais reconhecemos que precisamos é de equilíbrio, em contraponto a uma busca utópica de um estado permanente de felicidade e bem-estar.

Apesar deste reconhecimento, velhos hábitos são difíceis de deixar, e o risco é desejarmos sim equilíbrio, mas deturparmos o conceito e rigidificarmo-nos numa postura de não nos permitirmos nem grandes desânimos nem grandes entusiasmos, contentarmos-nos com o mediano, como se equilíbrio fosse sinónimo de meio-termo,  nem muito nem pouco, assim-assim.

Clarifiquemos então a ideia de equilíbrio:
Equilíbrio é um “estado” dinâmico de compensação de forças em que, quando puxo para um lado, activo em consequência uma força contrária que puxa para o outro, no sentido de não permitir a queda ou a destruição. Equilíbrio não é portanto um estado estático mas implica um movimento oscilatório entre pólos opostos, sempre com duas forças contrárias e compensatórias a puxar. Equilíbrio não é uma coisa que se adquire mas um processo que se vive.

Paradoxal que possa parecer, estar em equilíbrio implica portanto estar disponível para para o perder aqui e ali.
Neste sentido, talvez a pergunta-chave não seja como é que me equilibro mas como é que me disponibilizo para me desequilibrar.
E disponibilizo-me para me desequilibrar quando me permito sentir o que estou a sentir, seja agradável ou doloroso, quando arrisco experimentar coisas novas, diferentes, quando me permito depender momentaneamente dos outros quando preciso de colo e afastar-me momentaneamente quando preciso de dar os meus passos sozinho… Quando confio que posso dar qualquer passo porque sei que tenho a capacidade de analisar os erros, de analisar o risco, e confio que quando necessário consigo mobilizar recursos num sentido compensatório e recuperar o equilíbrio ou transformá-lo num equilíbrio diferente, mais adequado às novas necessidades ou exigências.

Preciso confiar que consigo estar próximo da queda sem cair. Preciso disponibilizar-me para o desequilíbrio para viver equilibradamente.

Não esqueça: não se atinge o equilíbrio, vive-se equilibradamente em desequilíbrio.

Joana Fojo Ferreira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

As emoções “malditas”…

emoc

Um dos passos mais importantes no trabalho terapêutico é a identificação das emoções, perceber o seu papel específico na vida do indivíduo, compreendendo como a sua inibição, evitamento ou expressão desregulada afeta a vida da pessoa.

Se há emoções com que ninguém parece ter preocupações, como é o caso da alegria, há outras que são olhadas com muita desconfiança, como é o caso da tristeza e da zanga. À tristeza, nalgumas situações (morte de alguém próximo, divórcio), é concedida algum tempo para que seja vivida, tentando-se depois que ela desapareça rapidamente, (“tristezas não pagam dívidas”) pois muitos de nós não nos concedemos, nem a nós nem aos outros, o direito de estar triste, nem queremos viver a vulnerabilidade que representa “estar triste” porque “temos que ser fortes” e… produtivos. Nesta armadilha caiem muitos dos que depois acabam verdadeiramente deprimidos, perdendo o sentido da sua própria vida.

Quanto à zanga, essa é vista ainda com piores olhos, como se fosse uma emoção maldita; ora ela afinal não é nem mais nem menos que as outras emoções, ou seja perfeitamente natural e saudável, acompanhada por transformações psicológicas e fisiológicas com objetivos específicos. Se a tristeza nos leva a chorar as perdas, e o medo nos leva a agir no sentido de nos protegermos, a zanga dá-nos a informação de que há limites que estão a ser ultrapassados e que teremos de tomar providências no sentido de repor justiça, é o que nos permite defender quando nos sentimos atacados, ou seja, tal como as outras emoções, tem uma tendência de resposta natural, adaptativa e essencial à sobrevivência.

 Quem não tem consciência das suas emoções ou as intelectualiza, não as pode utilizar como guia. Se ignorarmos a informação que as emoções nos dão, perdemos o contacto com uma parte de nós. Dado que as emoções têm o seu papel, se são ignoradas, acabam por se mascarar e aparecer com mais intensidade ou doutra forma, (emoções secundárias) vestindo outras roupagens, gerando uma confusão de sentimentos e pensamentos desadaptativos.

A zanga que não é ouvida e/ou consciencializada pode crescer e tornar-se violenta, ela pode ir, desde uma leve irritação até à fúria e pode tomar conta de nós a ponto de ficarmos seus reféns e agirmos a partir dela e não a partir do que ela nos comunica, perdendo qualquer hipótese de mediação e de simbolização.

A tristeza, quando sistematicamente não é ouvida e atendida no seu direito de vivência, pode surgir vestida de zanga e rapidamente transformar-se em revolta e violência.

O medo, quando não é autorizado a existir, pode dar o braço à vergonha, e surgirem ambos mascarados de zanga, (como se o medo fosse para os fracos e a zanga para os fortes).

A própria zanga, tantas vezes é maltratada e calada que, também ela se pode esconder por trás duma aparente tristeza e acabar em depressão.

O hipercontrolo, a negação ou o constante impedimento de expressão da zanga, pode também levar a comportamentos do tipo passivo-agressivo e ao cinismo, ressentimento, amargura e hostilidade, trazendo graves problemas ao nível do relacionamento interpessoal e do bem-estar psicológico.

Se percebermos que a zanga é secundária teremos que validar e autorizar a vivência das emoções que atrás dela se esconderam. A zanga pode também ser instrumental, isto é, utilizada para obter do outro, por exemplo através da intimidação, o que se pretende.

Se a zanga for primária, é necessário vivê-la, perceber donde vem e o que nos quer transmitir. Assim que a escutarmos verdadeiramente será mais fácil regulá-la e agir com maior liberdade, podendo escolher o rumo da nossa acção, sem estar sob o seu controlo, e, pelo contrário, controlá-la, deixando-a fluir de acordo com a nossa vontade.

Depois de nos apossarmos da zanga, poderemos decidir com mais consciência, liberdade e noção das consequências o que fazer com a informação que ela nos trouxe. Nesse processo poderá haver ganhos, perdas, responsabilizações, perdão ou não perdão, mas terá de haver sempre aceitação da situação, para que a zanga deixe de ser perturbadora. Podemos então deixá-la partir, uma vez que já cumpriu o seu propósito.

Emoções “malditas” sejam pois bem-vindas. A riqueza de cada um de nós reside na riqueza da paleta com que vemos e pintamos o mundo. Fugir das emoções, sejam elas quais forem, é tornarmo-nos mais pobres, menos humanos e menos conscientes de nós, podendo conduzir a resultados devastadores. Afinal as emoções são, não só uma das formas através da qual lemos o mundo que nos rodeia, como também uma forma de nós próprios comunicarmos. Utilizar as emoções para comunicar pode ser tão reconfortante como assustador, tão poderoso como desastroso. É também nesta mediação entre o que as emoções nos dizem sobre nós e o que nós pretendemos comunicar, entre o que descobrimos e o que mostramos que reside muito do trabalho terapêutico.

 A melhor forma de encontrar ou reencontrar o nosso equilíbrio psicológico é estar atento às pistas que as emoções nos trazem, cada uma por si, sem as confundir, escutando-as, dialogando com elas, de modo a, por um lado libertarmos o nosso sentir, e por outro, regularmos as nossas acções, de modo a podermos ser mais conscientemente livres.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta