Money, Money, Money……..

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Este é um tema que , como consequência desta fase que estamos a atravessar, estará seguramente na “ordem do dia” de muitos casais.

Independentemente da saúde financeira da relação, o dinheiro e as finanças do casal são um dos principais preditores de divórcio e fonte de constantes discussões.

No nosso país, falar de dinheiro é quase um sacrilégio e para ultrapassar este obstáculo é necessário compreender do que estamos a falar, porque discutimos, para encontrar uma maneira de chegar a acordos.

Idealmente, antes de assumir uma união de facto ou um casamento, é importante definir como o dinheiro e o restante património será detido e gerido. Mas, se tal não acontecer antes do início da relação , não o fazer depois é um erro que muitos casais cometem.

Considero que um casamento é uma parceria, e para que esta seja saudável, convém conhecer e acordar os termos da mesma.

Então o que precisamos de saber para ter uma abordagem construtiva ao tema?

Gustavo Serbasi identifica 5 perfis (poupados, gastadores, descontrolados, desligados e financeiros), cada um com os seus pontos fortes e fracos.

Conhecê-los e identificar o nosso é algo que ajuda a perceber os hábitos de consumo de cada elemento do casal, e compreender como potenciar os pontos fortes e atenuar os fracos.

Mas existem outros fatores a considerar quando conversamos sobre gestão financeira no casal. Assim aqui ficam algumas dicas a ter em conta:

Seja transparente

Quando for necessário rever os hábitos de consumo de cada um, a honestidade é a melhor política. A análise dos registos de despesa de forma conjunta, com o compromisso da ausência de comentários depreciativos e críticas maliciosas, ajuda a definir metas , a encontrar zonas problemáticas que precisam ser reduzidas.

Se após a definição de um orçamento fizer uma despesa não programada ou num valor superior ao acordado, não tente escondê-la do parceiro mas converse sobre a forma de acomodar esse valor e como proceder no futuro.

 Estabelecer um plano

As questões relativas à poupança são também um tema frequente discórdia. Nos 5 perfis referidos anteriormente, um dos pontos fracos de 2 deles, relacionam-se com o valor excessivo atribuído à poupança, que impede usufruir a vida de forma variada (jantar fora, viajar, etc).

Assim, quando falamos de poupanças é importante estabelecer metas comuns para ajudar a calcular o montante a economizar cada mês.

Também temos que considerar um montante de poupança individual para situações futuras como a reforma. Existem fórmulas que ajudam a calcular o esforço financeiro adequado a cada casal e que podem ser encontradas com a ajuda de um consultor financeiro.

 Conheça os hábitos da família de origem de cada um

A forma como encaramos a nossa relação com o dinheiro construiu-se ao longo do tempo, e com uma grande influência da nossa família e dos seus hábitos financeiros.

Conhecer esta história, permite-nos colocar no lugar do outro e compreender melhor as motivações para os gastos.

É muito importante perceber o valor atribuído ao dinheiro. Para algumas famílias os gastos com os filhos são sinónimo de amor e como tal prioridade, muitas vezes sem limites. Para outros, o dinheiro é fator de segurança, especialmente em famílias que passaram dificuldades ou em que circulava a mensagem de que o dinheiro seria a única forma de construir autonomia. Pode ainda ser significado de valorização pessoal, status, poder.

Não existe uma maneira certa ou errada na forma de interpretar o significado do dinheiro, mas conhecê-lo ajuda-nos a perceber os comportamentos do outro e ajuda o próprio a consciencializar-se das suas atitudes.

Quais os gatilhos que desencadeiam despesas

As compras por impulso são muitas vezes uma forma de atenuar a nossa ansiedade ou de promover um sentimento de reconhecimento e recompensa que não foi obtido de outra forma. Tentar compreender, em casal, qual o contexto emocional e de necessidades não satisfeitas, permite perceber aquilo que está subjacente e que verdadeiramente necessitamos.

A ansiedade e perturbações do foro mental, muitas vezes levam a este tipo de comportamentos e beneficiam de uma intervenção de um psicólogo.

Partilhar informação relativamente aos ganhos reais que cada um obteve

Com frequência, um dos parceiros ganha mais que o outro, ou tem proventos para além do seu salário. A partilha desta informação é essencial para determinar um orçamento equitativo.

A divisão de despesas a meias não é solução quando existe uma disparidade acentuada. Uma divisão proporcional, geralmente é a forma mais aceite e sentida como justa.

Partilhe com o parceiro como nos se sente quando o fator “diferença de salário” é uma realidade que impacta não só na nossa autoestima, como também pode alterar a relação de poder.

Decidir quem controla o quê

Haver um responsável pelo orçamento e pagamento de contas pode fazer sentido. Contudo, esta opção pode levar a excessos de poder ou falhas nos pagamentos.

Tal como noutras situação, tenham uma conversa aberta e honesta com o intuito de perceber como se processa o excesso de controle e encontrar soluções temporárias ou mais definitivas para cumprir prazos de pagamentos.

A alternância de papeis, se previamente estabelecida, pode ser uma solução para ambos os problemas, controle e esquecimento.

Planear o futuro

Ter filhos, dar assistência aos pais e/ou outros dependentes são questões que estarão presentes para muitos casais.

Uma conversa acerca do que pretendem proporcionar aos vossos filhos em termos educativos, como pretendem encarar eventuais necessidades de acompanhamento, financeiro ou outro, dos familiares mais idosos ou dependentes, também irá influenciar o vosso plano financeiro de curto prazo e permitirá perceber valores e formas de encarar o valor da vida.

Dívidas e encargos

Qual o montante de dívida, desde cartões de crédito a empréstimos ou pensões de alimentos, trazemos para a relação?

As dívidas que trazemos para uma relação são da nossa responsabilidade, moral e financeira. Contudo, irão afetar a capacidade do próprio e do casal para construir  e atingir as metas do orçamento.

Se necessário, procurem um plano de renegociação da dívida que permita acomodar as necessidades do orçamento conjunto. Mais uma vez, a transparência e um diálogo construtivo são muito importantes.

Não sendo o tema mais romântico para o início de uma relação, o contrato antenupcial, no caso dos casamentos, ajuda a que logo desde o princípio fiquem claras as questões relativas ao património.

Celebrar conquistas

Depois de alguns anos de rotinas os casais têm tendência a cair numa zona de conforto que potencia conflitos. Celebrar as conquistas, periodicamente, que refletem o esforço do casal, com pequenos gestos, ou simplesmente com o assinalar de mais uma meta alcançada, reforça e aproxima a relação de casal.

Catarina Mexia – Terapia de Casal

 

Amar-te-ei até me matares…

Firmino

Firmino entra no restaurante e diz um “Bom dia!” na sua voz afável e, naquele momento e ao mesmo tempo, seca e distante, olhando de relance, quase de soslaio, para os seus colegas:

“- Estes cabrões estavam a falar nas minhas costas…” – pensa ele enquanto entra para a divisão onde os empregados trocam de roupa e vestem a farda profissional.

“- É sempre a mesma merda, sempre a fazerem-me a folha, mas eu vou falar-lhes a bem, vou adoçar-lhes a boquinha para eles não perceberem que eu já os topei!”

Quando vai a sair, já vestido, volta-se para trás e revê-se no espelho comprido e alto que o patrão comprou:

“- Eu tenho que estar bem.” – pensa, com vaidade – “E lembra-te sempre: O teu patrão é o cliente! Sempre! Não o dono do restaurante…” – e corrige – “…dono do restaurante que, a bem dizer, é como se fosse um pai para mim…”

Frequentemente os colegas queixam-se ao patrão:

“- Ele é um anormal. Anda sempre desconfiado! Não lhe podemos dizer nada! O que quer que a gente diga, ele pega e leva para outro sentido! O homem tem pancada!”

“- Pancada têm vocês! Ele não faz mal a uma mosca! Não prestem atenção ao que ele diz! Vejam como ele trata os clientes! E aprendam com ele, isso sim! Cada um de nós tem a sua mania! A mania dele é andar desconfiado. Deixem-no em paz e não liguem. Vocês vêm aqui é para trabalhar e ele também. Fora as desconfianças ele é uma jóia de moço!”

Firmino, de alguma forma, nunca desconfiava dum cliente.

Tinha o dom de os tratar de tal forma que eles se sentiam especiais, únicos, sorria sempre e mantinha-se à distância para mostrar que estava atento e disponível mas que não queria incomodar:

“Os clientes vêm cá para comer e não para te aturar… Não é como os brochistas dos teus colegas que andam para aí a engraxar… É deixá-los sossegados… E só perguntas se está tudo bem ou se a comida está boa uma vez e quinze minutos depois de eles começarem a comer. E acabou! Quem pergunta duas vezes é porque é surdo ou burro, ou então graxista. Os clientes não gostam de graxistas!” – pensa para si próprio.

Firmino tinha orgulho na forma como servia e os clientes adoravam-no.

Homem de poucas falas, tinha sempre um sorriso para os clientes, uma palavra amável ou uma brincadeira para os animar.

“- Quero uma Coca-cola zero, por favor.”

“- Sem álcool portanto!” – dizia sorrindo para o cliente.

Desconfiava dos colegas, da própria mulher, às vezes do patrão, mas nunca dos dois filhos que tinha e muito menos dos clientes.

Ninguém conseguia perceber a lógica desta selecção – nem ele mesmo.

Na primeira vez que veio à consulta disse-me que a esposa fazia tudo para o matar sem que ninguém desse conta. Segundo ele, a esposa estava constantemente a tentar envenená-lo.

E disse-me:

“- Ela agora mandou pintar as portas da rua de verde! Aquilo é tinta que fede até dizer chega! E eu já percebi que aquela tinta é venenosa e que lá está ela a querer envenenar-me! Como o nosso quarto é perto da porta da rua, eu fui dormir para um quarto nos fundos e disse-lhe: Fica aí tu a dormir que a mim não me envenenas tu!”.

Esquecia-se Firmino da incongruência da esposa não querer dormir também noutro quarto, já que assim o dito veneno a iria matar ela.

No final duma longa entrevista, perguntei-lhe:

“- Sem ser este problema que o traz cá, você tem outras doenças?”

“- Oh, doutor! O caruncho já me começou a entrar nos ossos! Faço um medicamento para a tensão arterial e outro para o colesterol.”

“- E quais são?” – perguntei.

“- Ah! Isso não sei! Deixe-me só telefonar à minha mulher que ela é que sabe disso tudo!”

Para este efeito, de alguma forma, a mulher já não o quereria envenenar com os comprimidos para a hipertensão arterial ou para a hipercolesterolémia.

Bem ou mal, todos os adoravam: Filhos, clientes, patrão…

A esposa e os colegas estavam cansados de o aturar, mas reconheciam que, no fundo, “lá mesmo no fundinho” – como dizia um deles – o Firmino não era mau rapaz.

Com a esposa era muito mais cansativo – há mais de vinte anos que falavam quase por monossílabos – porque “Desculpe lá, doutor! Vá para lá você aturá-lo que até a pasta dentífrica ele esconde de mim!”.

Mas quando um deles ficava doente esfumavam-se “os filmes e as desconfianças” (sic) e “ia dormir para junto da cama do hospital se fosse preciso! Ora isto entende-se, senhor doutor? Num minuto eu ando a querer envenená-lo, no outro anda a chatear os médicos e os enfermeiros se eu andava a ser bem tratada no hospital! Ora isto faz algum sentido?”

Eram estas incongruências que traziam à luz que o Firmino tinha lá um cantinho muito escondido no qual ele sabia que as desconfianças e os filmes eram tudo “invenções da minha cabeça, será mesmo, senhor doutor?”.

Mas era um cantinho muito pequeno e muito escondido e suspeito que nem mesmo Firmino tinha consciência daquele cantinho.

Era por esse cantinho que brotava o amor.

O amor que tinha pela sua família e sobretudo pela esposa – algo que ele não compreendia nunca ter desaparecido – “Ora se ela me quer matar, como é que isto é possível, senhor doutor?”

“- Mas, Firmino… Você já diz isso há 20 anos e nunca nada aconteceu, certo?”

“- Olhe que não é assim, que eu uma vez tive um acesso de tosse que tive que ir para as urgências!”

“- Mas não morreu?” – insisti.

“- Claro que não, senão não estaria aqui a falar consigo,  ora !”

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E lá ia Firmino.

A iluminar as mesas dos clientes, como a maior vedeta do restaurante.

A amar como podia.

“- Doutor, antes da doença ele era um Príncipe!”

“- E agora não é porquê?” – devolvi à esposa.

Ela fez uma pausa de alguns segundos antes de me responder:

“- Continua a ser um príncipe. Mas não deixa de ser um chato!”

 

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

O colo de Deus…

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L., 62 anos, administrador executivo numa empresa de equipamentos electrónicos, cresceu numa família onde foi iniciado na magia dos gestos de amor.

“Sabe?

Ontem, uma vez mais, adormeci a pensar na minha mãe que Deus tem.

Depois dela conheci muitas mulheres, mas nenhuma como ela.

Ela acordava-me de manhã como um sopro muito suave na testa ou a acarinhar o meu cabelo muito ao de leve com um dedo apenas…

Eu nunca acordava em sobressalto. Ela tinha este talento de me fazer acordar tão devagarinho que eu nem sentia a diferença entre estar a dormir e acordar.

Só ela, até hoje, conseguia acordar-me assim…

Quando hoje o dia me corre mal, quando eu vou angustiado com alguma coisa para a cama eu peço a Deus que me acolha no seu regaço. Ou ao pólo feminino de Deus. Ou a Nossa Senhora. Eu peço aquele colo que a minha mãe me dava e mais ninguém sabia ou soube como me dar.

É um colo protector, é um colo onde nada me pode acontecer e, mais que uma sensação de segurança, o que é mais vibrante e intenso é a sensação de estar envolto neste estranho Amor de mãe.

Muito raramente lá acontece eu adormecer e cair no colo de Deus…

E eu acho que aprendi com a minha mãe.

Quando a minha filha tinha 2 anos ela começou a acordar muitas vezes de noite e ficava em pânico por não nos ver ao pé dela.

Acredita que por vezes eu era tão rápido que ela nem tinha tempo de começar a chorar?

E não é preciso dizer nada realmente… Eu passava-lhe a mão pelo cabelo e sussurrava um “Shhhhh” em suspiro e dizia-lhe: “Está tudo bem, querida. Não se passa nada.” e ela caía com a cara na almofada e adormecia ainda antes de se conseguir aninhar-se na cama dela…”

Fiquei a pensar como é que uma memória tão antiga perdura tão tarde na vida de alguém, como é que reaviva os olhos deste homem uma luz tão intensa de conforto e calor, e a resposta que se me oferece é que a responsabilidade é do Amor.

Um Amor maternal.

Quem sabe um Amor feminino, que se prolongou na Alma deste homem.

Um dia será a sua filha a lembrar a alguém a Magia do seu pai.

E a uma grande parte (para não dizer a maior parte) das coisas inexplicáveis da Experiência Humana têm a ver com o Amor, enquanto experiência vivencial que encerra em Si todas as línguas mudas e faladas e atinge as Almas das pessoas nos seus recônditos mais silenciosos deixando lá uma marca eterna e indelével.

 

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

Sobre o Ciúme

“ – Senhor, cuidado com o Ciúme. É um monstro de olhos verdes, que escarnece da carne de que se alimenta.”

William Shakespeare (in Othello, 3º acto; Iago dirigindo-se a Otelo)

 

Quando falamos de ciúme, ocorre-nos provavelmente, em primeiro lugar, a sua expressão nas relações amorosas, mas podemos encontra-lo em relações fraternais face ao amor/atenção dos pais/cuidadores, entre amigos face a um outro amigo, tido, por qualquer razão, como especial, ou entre colegas em relação a professores, chefias, etc.

Descartes, distinguia entre “ciúme bom” -cuidador, protector- e “ciúme mau” – amor errado, má opinião de si ou do outro-.

Permito-me agarrar naquilo a que Descartes chama “ciúme bom”, e considera-lo uma parte do amor que cuida e protege o ser amado não desejando perdê-lo. Essa parte é de facto amor, quando adaptada à situação e à idade (não se protege e cuida da mesma forma um bebé, uma criança, um adolescente ou um adulto, nem se cuida ou protege nenhum deles sempre da mesma forma), porém, quando se protege e cuida duma forma desadequada, (uma forma que não tem a ver com as necessidades do outro, mas com as do próprio) aí encontramos o “não amar da maneira certa”. O sentimento de posse e o medo de perda tornam-se superiores ao gesto de cuidar e proteger restringindo as necessidades e vontade do outro.

Olhemos para o ciúme como uma reacção complexa a uma ameaça (real ou imaginada) a uma relação de apego diádica que se valoriza. A ameaça é vista como algo ou alguém (rival) que interfere nessa relação.

A reacção que o ciúme gera, envolve emoções complexas, de frustração (um misto de tristeza, zanga e medo) que pode levar à angústia, à raiva e à vergonha por se antever ou imaginar que se perde a “relação de primazia” com o ser (objectificado, porque não livre) que se deseja seu.

Percebemos assim que o ciúme se relaciona sobretudo com o sentimento de posse de alguém de quem o ciumento necessita para ser preferido, para ser amado (já que o próprio não consegue fazê-lo), e não com o amor ao outro ou do outro enquanto livre escolha (já que o próprio receia que ele/ela não o faça, se não for preso/controlado).

“Má opinião de si” dizia Descartes, (Freud falava de “ferida narcísica”), pensemos em termos de um processo de vinculação parental que não foi suficientemente segura durante a infância e que conduziu a uma baixa autoestima, contribuindo para as dificuldades ao nível da maturação emocional e da concepção de si como ser autónomo e “amável” (passível de ser amado). Podemos imaginar que quanto menos segura foi essa vinculação, mais o ciúme pode ter tendência a ser patológico, procurando obcessivamente certificar-se de um apego que paranoicamente vigia, podendo, com isso, acabar por destrui-lo, reconfirmando então os sentimentos de impossibilidade de ser amado e perpetuando o ciclo.

Retomando a citação de Shakespeare, diria que todos nós podemos conviver facilmente com um sorriso de olhos verdes que nos pisca o olho, de vez em quando, de dentro do nosso bolso, alertando-nos para a nossa vulnerabilidade, receios, desejos, ilusões e mágoas, a que talvez devêssemos prestar mais atenção para melhor nos conhecermos. O problema agrava-se quando o sorriso se fecha, nos escapa do bolso e começa a degradar a nossa relação. E pior será, quando o monstro, que se alimenta de quem o alimenta, crescer e atingir proporções que poderão ter terríveis consequências. (Otelo mata a sua mulher, Desdémona)

Quando o ciúme se torna monstro chamamos-lhe patológico, há desconfiança constante, agressão verbal e compulsão a verificar as acções do/a parceiro/a (escutar conversas, ver mensagens e e-mails, ou mesmo segui-lo/la). Curiosamente, estas tentativas de aliviar o desconforto, não só não resultam porque não são duráveis, como têm tendência a agravar-se podendo desembocar em situações de delírio, em que a interpretação da realidade é feita através dos receios do próprio e de imagens, que fantasia e projecta, antecipando-as ou vivendo-as como reais. Estas interpretações delirantes podem levar a conclusões erradas e a acções desastrosas, uma vez que as crenças sobre o que se está a passar não são permeáveis à testagem da realidade. Estes casos, para além de intervenção psicoterapêutica, necessitam de intervenção psiquiátrica, em muitas situações com caracter urgente.

Não nos iludamos; jamais o ciúme poderá ser prova ou resultado de muito amar. É sim, o medo desesperante de abandono, de vazio, de impossibilidade de ser, perante a perda da posse, da exclusividade ou da primazia de quem queremos que nos ame, porque nós não aprendemos a fazê-lo e não acreditamos que alguém o possa fazer, se não estiver sob a nossa vigilância e controlo. Assim… seremos também incapazes de saber amar um outro ser livre. A Corrosão seguirá o seu ciclo, como diz o poeta, “escarnecendo da carne de que se alimenta”

 Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Mutilados emocionalmente

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Hoje não quero falar de psicoterapia.

            Na vida dum terapeuta há inúmeras situações em que nos comovemos com o que os pacientes nos contam.

            É natural e mesmo saudável, até certo ponto, nos comovermos.

Etimologicamente falando, “comover” significa “emocionarmos-nos” (movere) “com” alguém – empatia significa isto mesmo – colocarmos-nos na pele do outro, tentarmos sentir o que o outro sente e emocionarmos-nos com o que nos conta, para que possamos apreender, tanto quanto nos é permitido e razoável, a vivência do paciente, também na sua dimensão emocional e existencial.

Mas outras alturas há em que as emoções desencadeadas não são apenas de dor, de tristeza e desespero – outras alturas há em que são despertadas em nós emoções como a raiva e indignação profunda.

De vez em quando, e não tão raramente como seria desejável, somos confrontados nas consultas com situações extremas de maus-tratos, de sadismo psicológico, de humilhações repetidas e abusos continuados no tempo.

Estas pessoas chegam-nos à consulta derrotadas, destruídas, humilhadas, autênticos farrapos humanos cujas vidas são um testemunho de dor infligida por vezes pelas pessoas que eram supostas terem-nas protegido quando ainda não se sabiam defender.

Numa consulta recente atendi um paciente.

Chegou à consulta ansioso, tenso e muito auto-consciente de si próprio.

A sua face transbordava emoções de intenso sofrimento, da tristeza à ansiedade intensa, de expressões de profunda dor a gritos surdos de raiva que tudo fazia para conter.

Descreveu-me uma mãe sádica e abusadora, que o despia à frente das amigas para que pudessem ver o quão pequeno era o pénis do filho ainda criança, e que nos parques infantis se escondia dele e do irmão e só aparecia quando percebia que eles estavam em pânico, a rir, sorrindo e dizendo: “Vocês já estavam a ficar aflitos, não é?”

Falou-me de como sentia que em cada dez vezes, a mãe tinha 9 interacções de maus tratos e de abuso e uma em que mudava diametralmente de registo e lhe dava “uma festa” e “era esta festa que me destruía, percebe, Sr. Dr.?!”

Ou outra paciente, que foi abusada sexualmente durante 2 anos quando tinha apenas 5 pelo irmão da sua ama que era o seu catequista, e ainda que o pai a fechou em casa, sozinha, para a esconder da sua mãe, para fazer “pirraça à mãe” de quem tinha acabado de se divorciar.

Ou outra ainda, cuja mãe se se fechava na casa de banho a gritar que ia morrer, enquanto a filha desesperava em culpa e angústia.

Estas pessoas foram privadas de amor e protecção, negados os seus direitos humanos mais elementares enquanto crianças, e mutiladas emocionalmente.

Deveriam já existir planos psicossociais preventivos mais eficazes, com meios humanos competentes e capazes para acautelar a ocorrência destes maus-tratos e para tratar os pais quando estes não são de todo responsabilizáveis.

E, não sendo isso possível, deveria haver uma justiça capaz de responsabilizar criminalmente os pais que foram dolosamente negligentes ou maltratantes.

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapia