Contra Argumentos Não Há Factos

Sim, é verdade, a versão original é “contra factos não há argumentos”; no entanto, a nossa mente é tão poderosa que, por lógico que seja pensar que contra factos não há argumentos, os argumentos que a nossa mente cria tendem a ser difíceis de combater por mais factos que lhe peçamos para considerar.

Se não vejamos, quantas vezes fazemos interpretações das motivações dos outros, por exemplo de não gostarem verdadeiramente de nós, para quando eles explicam o motivo da ausência ou da indisponibilidade, nós acharmos mesmo assim que estão só a ser simpáticos e por mais que neguem no fundo não gostam de nós. Ou por exemplo, quando surge um boato sobre alguém, mesmo que venha a ser desmentido, ficamos sempre com a pulga atrás da orelha e tendemos a ter dificuldade em verdadeiramente voltar a confiar. E ainda outras vezes, no que toca a nós próprios, criamos ideias sobre quem somos e como funcionamos, e quando nos indicam uma característica diferente que vêem em nós, tendemos a defender-nos e ter dificuldade em nos revermos na característica que nos estão a atribuir.

O que é que se passa aqui: entre várias razões possíveis para esta dificuldade da mente em desconfirmar ideias pré-concebidas, uma é que temos uma história de desenvolvimento que molda a visão que temos do mundo e das coisas, e que influencia a interpretação que fazemos dos factos. Nós não somos tábuas rasas que se limitam a receber estímulos do exterior e a responder em conformidade e apenas ao estímulo específico, as nossas experiências passadas, as nossas ideias e opiniões, as nossas inseguranças, as nossas peculiaridades, contribuem para fazermos associações de coisas e ideias, de forma que, quando estamos a responder a um estímulo, não estamos apenas a responder a esse estímulo mas a toda uma rede de associações a ele, sejam elas ligações mais próximas ou mais distais, façam elas mais ou menos sentido face ao estímulo específico apresentado.

Qual é o antídoto para este mal que nos assola: em primeiro lugar é importante clarificar que não há uma receita única nem nenhuma só por si suficientemente eficaz, no entanto, há alguns cuidados que podemos ter que poderão favorecer cairmos menos vezes neste erro.
É importante procurarmos manter um espírito de abertura à informação que recebemos do exterior, e permitirmo-nos verdadeiramente questionar possibilidades alternativas às nossas percepções, aos nossos “argumentos”, ainda que questionando, naturalmente, as motivações e os argumentos dos outros também. E por outro lado, é importante não desconsiderar a importância de “dormir sobre o assunto”, disponibilizarmo-nos para voltar a pensar sobre a questão mais tarde, menos a quente, menos defensivos, com as ideias mais claras e a mente mais aberta.

No fundo é importante estarmos abertos a (re)construirmo-nos ou (re)descobrirmo-nos a cada momento, cientes que isso não muda a nossa essência e o nosso valor, mas pelo contrário permite tornarmo-nos mais conscientes e mais coerentes connosco próprios.

Doutora Joana Fojo Ferreira – Psicóloga e Psicoterapeuta 

 

Sobre o Ciúme

“ – Senhor, cuidado com o Ciúme. É um monstro de olhos verdes, que escarnece da carne de que se alimenta.”

William Shakespeare (in Othello, 3º acto; Iago dirigindo-se a Otelo)

 

Quando falamos de ciúme, ocorre-nos provavelmente, em primeiro lugar, a sua expressão nas relações amorosas, mas podemos encontra-lo em relações fraternais face ao amor/atenção dos pais/cuidadores, entre amigos face a um outro amigo, tido, por qualquer razão, como especial, ou entre colegas em relação a professores, chefias, etc.

Descartes, distinguia entre “ciúme bom” -cuidador, protector- e “ciúme mau” – amor errado, má opinião de si ou do outro-.

Permito-me agarrar naquilo a que Descartes chama “ciúme bom”, e considera-lo uma parte do amor que cuida e protege o ser amado não desejando perdê-lo. Essa parte é de facto amor, quando adaptada à situação e à idade (não se protege e cuida da mesma forma um bebé, uma criança, um adolescente ou um adulto, nem se cuida ou protege nenhum deles sempre da mesma forma), porém, quando se protege e cuida duma forma desadequada, (uma forma que não tem a ver com as necessidades do outro, mas com as do próprio) aí encontramos o “não amar da maneira certa”. O sentimento de posse e o medo de perda tornam-se superiores ao gesto de cuidar e proteger restringindo as necessidades e vontade do outro.

Olhemos para o ciúme como uma reacção complexa a uma ameaça (real ou imaginada) a uma relação de apego diádica que se valoriza. A ameaça é vista como algo ou alguém (rival) que interfere nessa relação.

A reacção que o ciúme gera, envolve emoções complexas, de frustração (um misto de tristeza, zanga e medo) que pode levar à angústia, à raiva e à vergonha por se antever ou imaginar que se perde a “relação de primazia” com o ser (objectificado, porque não livre) que se deseja seu.

Percebemos assim que o ciúme se relaciona sobretudo com o sentimento de posse de alguém de quem o ciumento necessita para ser preferido, para ser amado (já que o próprio não consegue fazê-lo), e não com o amor ao outro ou do outro enquanto livre escolha (já que o próprio receia que ele/ela não o faça, se não for preso/controlado).

“Má opinião de si” dizia Descartes, (Freud falava de “ferida narcísica”), pensemos em termos de um processo de vinculação parental que não foi suficientemente segura durante a infância e que conduziu a uma baixa autoestima, contribuindo para as dificuldades ao nível da maturação emocional e da concepção de si como ser autónomo e “amável” (passível de ser amado). Podemos imaginar que quanto menos segura foi essa vinculação, mais o ciúme pode ter tendência a ser patológico, procurando obcessivamente certificar-se de um apego que paranoicamente vigia, podendo, com isso, acabar por destrui-lo, reconfirmando então os sentimentos de impossibilidade de ser amado e perpetuando o ciclo.

Retomando a citação de Shakespeare, diria que todos nós podemos conviver facilmente com um sorriso de olhos verdes que nos pisca o olho, de vez em quando, de dentro do nosso bolso, alertando-nos para a nossa vulnerabilidade, receios, desejos, ilusões e mágoas, a que talvez devêssemos prestar mais atenção para melhor nos conhecermos. O problema agrava-se quando o sorriso se fecha, nos escapa do bolso e começa a degradar a nossa relação. E pior será, quando o monstro, que se alimenta de quem o alimenta, crescer e atingir proporções que poderão ter terríveis consequências. (Otelo mata a sua mulher, Desdémona)

Quando o ciúme se torna monstro chamamos-lhe patológico, há desconfiança constante, agressão verbal e compulsão a verificar as acções do/a parceiro/a (escutar conversas, ver mensagens e e-mails, ou mesmo segui-lo/la). Curiosamente, estas tentativas de aliviar o desconforto, não só não resultam porque não são duráveis, como têm tendência a agravar-se podendo desembocar em situações de delírio, em que a interpretação da realidade é feita através dos receios do próprio e de imagens, que fantasia e projecta, antecipando-as ou vivendo-as como reais. Estas interpretações delirantes podem levar a conclusões erradas e a acções desastrosas, uma vez que as crenças sobre o que se está a passar não são permeáveis à testagem da realidade. Estes casos, para além de intervenção psicoterapêutica, necessitam de intervenção psiquiátrica, em muitas situações com caracter urgente.

Não nos iludamos; jamais o ciúme poderá ser prova ou resultado de muito amar. É sim, o medo desesperante de abandono, de vazio, de impossibilidade de ser, perante a perda da posse, da exclusividade ou da primazia de quem queremos que nos ame, porque nós não aprendemos a fazê-lo e não acreditamos que alguém o possa fazer, se não estiver sob a nossa vigilância e controlo. Assim… seremos também incapazes de saber amar um outro ser livre. A Corrosão seguirá o seu ciclo, como diz o poeta, “escarnecendo da carne de que se alimenta”

 Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta