Arrogantes (também) somos nós!

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Já nos conhecemos bem. Afinal, temos passado horas e horas a escutarmo-nos. O João é um tipo inteligente e com o coração no sítio. Veio para “desatar alguns nós que me atormentam”, disse-me, a primeira vez que se sentou comigo.

  Diz-me, com a voz trémula: sabe, acho que há um lado meu arrogante, que me tem tramado a vida. Acho que sempre o tive. Lembra-se daquela história do grupo de jovens? Eu era muito novo. Era o mais novo do grupo. Era para aí a 2ª reunião que ia. Estava inseguro. E sabe como é que é quando se está inseguro: metemo-nos em bicos de pés. Uma das raparigas, mais velha do que eu, não sabia quem era o Guterres. Ele era primeiro-ministro na altura. Bem, eu do alto do meu ar mais pedante disse-lhe qualquer coisa como: “Não sabes quem é o Guterres? Que falta de cultura política!” Fez-se um silêncio na sala. A rapariga riu-se e encaixou com uma categoria de fazer inveja. O meu irmão olhou-me com uns olhos de: foge-me da frente que nunca mais vou esquecer. No final, sozinhos, deu-me uma descasca, que ainda hoje lhe agradeço. E sabe, a rapariga, depois daquele meu laivo de arrogância sem fim, teve a bondade de ser minha amiga. Ainda hoje somos amigos. Ela até podia não saber quem era o Guterres, mas de pessoas, meu Deus, de pessoas, dava-me cinco a zero! Depois foi o que você sabe: no Liceu, entre as borbulhas e as Doc biqueira de aço, estava longe de me sentir um ás de trunfo. Eu acho que as pessoas até gostavam de mim, mas faltava-me a confiança para ir a jogo, à homem. Lá saber quem era o Guterres e o Clinton, lá isso eu sabia, mas já como ser acutilante com as miúdas… ainda tinha muito que aprender! A Faculdade foi um upgrade extraordinário na minha vida. Perceber que me conseguia sintonizar com pessoas com histórias tão diferentes da minha, acho que me ajudou a tornar um bocadinho mais seguro, um bocadinho mais humilde. Travou este meu lado mais arrogante, mas não o matou de vez. Que o diga a minha primeira namorada da Faculdade, a quem fiquei a dever alguns pedidos de desculpas, dívida que entretanto saldei. A insegurança dos primeiros anos de trabalho, acho que o reacendeu um bocadinho. Que o digam alguns operadores de call center, com quem tive verdadeiro vómitos violentos e arrogantes. Sabe, eu acho que tenho um lado verdadeiramente humilde. Sou amável com as pessoas e adoro misturar-me com elas, reconhecer-lhes o mérito e encantar-me com as suas qualidades. Mas, às vezes, meu Deus, às vezes, pareço um touro enraivecido, a espumar arrogância por todos os poros, como se o mundo se tivesse realmente unido para me tramar. Tenho pensado muito nisso, desde que, há umas semanas, acordei um dia tão azedo, mas tão azedo, que me zanguei com Deus (como poderia ele existir se a minha vida estava tão longe de ser a que sonhei?!), com os meus pais, com a minha namorada, consigo, com o céu estrelado e com tudo o que mexesse ou estivesse parado, acho eu! Sabe, entretanto, acho que houve duas coisas que me fizeram parar para pensar. O Bernardo [um grande amigo, de há muitos anos] disse-me, a propósito das lutas da vida, uma coisa que me ficou a martelar na cabeça: “A verdade é que, chegada a hora, não somos melhores do que ninguém”. A outra, tal como naquela vez, no grupo de jovens, foi o meu irmão que ma disse. Não foi muito mais do que um: “às vezes também tens de ter calma”. A princípio senti aquilo como castrador. Só aumentou o meu sentimento de cruzado contra o mundo. Mas a verdade é que, pouco depois, me fez cair em mim. Fez-me pensar em como, tantas e tantas vezes, me ponho numa posição sobranceira perante a vida, como se fosse a última bolacha do pacote. E a verdade é que não sou! Fiquei ali uns dias derreado, tristonho, metido comigo, envergonhado, muito envergonhado acho eu. Mas, a verdade é que foi libertador! Por mais paradoxal que possa parecer, perceber que não sou a última bolacha do pacote serenou-me! Por mais estranho que possa parecer, perceber que tenho de ser mais humilde deu-me esperança no futuro e força para o fazer acontecer! Engraçado como sermos mais humildes nos torna mais seguros. Lembrei-me do Bob Dylan quando, na sua Blowin´in the Wind, se pergunta: How many roads must a man walk down before we can call him a man?, percebi que ainda ando a aprender como é que se pode ser assertivo e humilde ao mesmo tempo, e acho que fiquei um bocadinho mais amigo da vida, de Deus, dos meus pais, da minha namorada, dos meus amigos, do céu estrelado, de tudo o que mexe e que está parado!

 Se, como nos ensina Bion, a arrogância (como a inveja destrutiva, a violência ou a indiferença) vem direitinha da parte psicótica da personalidade, esta capacidade extraordinária de nos escutarmos, de nos pormos em causa, de discorrermos sobre as nossas histórias, ligando-as, de repararmos erros, de nos perdoarmos e de aprendermos com a experiência, será – creio – a forma mais efetiva de, humildemente, nos encantarmos pela vida, agarrando-a pelos colarinhos!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue – sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais – está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

José Sargento – Psicólogo clínico e Psicoterapeuta

Maria já não sabe o que fazer…

Maria já não sabe o que fazer. Tudo na sua vida parece cinzento.

Tem uma família perfeita, um marido que faz tudo por ela, dois filhos que adoram a mãe, uma vida abastada, como ela nunca imaginou ter. Uma casa a seu gosto, que teve sempre a liberdade e a possibilidade de a decorar como quis, dois carros, uma casa na praia, uma casa no campo, um trabalho que antes adorava. Tudo na sua vida não justificava o seu sentir.

O que se passava com ela?

Desde há algum tempo que tudo parecia insípido, insuficiente, que nada lhe dava prazer, e tudo era feito com esforço. Um peso nos seus ombros, um aperto no peito que nunca lhe dava descanso. O tempo não ajudava. Quanto mais o tempo passava, mais a vida lhe parecia difícil. E ainda por cima, para ela, nada disto fazia sentido.

Como tinha ela chegado a este ponto?

Deixara de ser esposa, não conseguia ser mãe, nem se sentia pessoa. Arrastava-se da cama para o sofá, e do sofá para a cama. Abria o frigorífico e parecia que nada lhe apetecia, e com isso já perdera peso, e quando se olhava ao espelho, um dos seus maiores inimigos, parecia uma amostra do já tinha sido. E pensava todos os dias na ingratidão que era o seu ser: não tinha razão para assim se sentir. E isso ainda a deitava mais abaixo.

Outrora já tinha sido feliz.

Lembra-se distantemente desses momentos, onde a vida lhe sorria, onde ela era capaz. Sentimento agora desaparecido, a capacidade. E olhava à sua volta e ainda mais triste se sentia. Ouvia tantos que lhe diziam que também estavam deprimidos e seguiam com a sua vida. Que trabalhavam, enquanto ela estava de baixa há tanto tempo, que já medo sentia de voltar aquele lugar, que eram pais e mães, que eram pessoas, enquanto ela se sentia uma manta de retalhos, e que nunca mais sairia deste fosso de lodo que a prendia, e quanto mais ela batalhara no passado, mais enterrada ficava.

Era tão difícil para ela admitir que precisava de ajuda. Isso seria a confirmação do fracasso que se sentia. O marido já insistira, mas ela sentia que sozinha não conseguiria voltar à sua vida. E mais uma ouvia: “Eu também estou deprimida, mas sabes não me posso dar ao luxo de ficar em casa”, como se fosse um luxo ao capricho o seu sofrimento. E mais uma vez lhe diziam, amigos e estranhos “tens de te erguer de novo, faz um esforço”, e mais uma vez ninguém percebia que ela tentava todos os dias, e que o que fazia era o que conseguia. E quanto mais ouvia estas coisas pior se sentia.

Olhava para os olhos tristes dos filhos, que sentiam que a mãe já quase não existia, e para ela era mais uma facada no peito que sentia. Seria então uma opção?

Considerando que existem sete mil milhões de pessoas no mundo, e que a Organização Mundial de Saúde refere que existe uma média de cento e vinte e um milhões de pessoas com um quadro que permite um diagnóstico de um quadro clínico de depressão, nas suas diversas manifestações, vemos então que existe uma prevalência de 1,7% da população que é portadora desta doença.

Então porque ouvimos tantas pessoas que se afirmam estar deprimidas?

Isto inicialmente deve-se ao desenvolvimento massivo a nível de países, e que é verificado que quanto mais o país é desenvolvido, com visões mais capitalistas, tem mais psiquiatras por metro quadrado, podemos então afirmar que existem fatores extra biológicos que justificam esse mesmo quadro clínico. Ou seja, quanto mais temos acesso a diferentes objetos de desejo, variedade de produtos, e afins, maior se torna a nossa lista de necessidades, e a não concretização das mesmas aumentam exponencialmente o sentimento de insuficiência na nossa vida.

Pegando no exemplo, inclusivamente nacional, e olhando para as pequenas comunidades do interior de Portugal, em que o acesso a recursos diversificados é limitado pelo isolamento dessas regiões, a lista de necessidade sendo ela mais reduzida, mais facilmente as pessoas sentem os seus desejos satisfeitos, e logo diminuem algumas variáveis que contribuem para quadros depressivos.

Por outro lado, existem vários tipos de depressão, em que alguns tipos se tornam essências à aceitação de perdas naturais da nossa vida, como por exemplo a morte de um pai ou mãe numa idade avançada, de forma a não se desenvolver um quadro de luto patológico, outras tem uma valência mais biológica, em que elas perduram mesmo mudando algumas condições externas à pessoa, tendo nestes casos que se recorrer à introdução de psicofármacos.

Em ambos os casos o acesso a psicoterapia é essencial no seu tratamento.

Então porque é que tanta gente se auto-rotula como depressivas, e além disso parecem que conseguem viver sem qualquer limitação evidente?

Isto deve-se ao facto da banalização da palavra depressão.

Os quadros clínicos de depressão, devem ser avaliados e diagnosticados por técnicos de saúde mental, pois muitas vezes se confundem sentimentos de tristeza que podem ser semelhantes aos verificados nos casos de depressão clínica, que contribuem para esta denominação incorreta e uso excessivo deste termo.

Estar triste pode ser um estado de ânimo adaptativo e normal e não deve ser confundido com tristeza.

Quando olhamos para os critérios necessários para este diagnóstico, o primeiro e primordial, é a interferência de forma evidente destes mesmos sintomas na vida quotidiana da vida do paciente. Outros são os critérios que vos convido a pesquisarem, em que podemos afirmar que os mais conhecidos são sentimentos de tristeza profunda e melancolia mantidos durante um período alargado de tempo, uma incapacidade de olhar para si e para o futuro de forma justa e realista, pois parece que este quadro nos coloca um filtro cinzento à frente dos nossos olhos, e que faz com que tenhamos uma visão em túnel e que impossibilite uma plasticidade de conseguirmos dar significado diferente às diferentes áreas da vida da pessoa.

A banalização desta palavra contribuiu para dificultar a perceção do que verdadeiramente se trata quando falamos de depressão.

Comentários como “eu também estou deprimida e sigo com a minha vida” ou “tens de fazer um esforço” ou “tu podes dar-te ao luxo de estares deprimida” vêm corroborar a ideia negativa que os doentes sofrem de depressão, podendo nem ser este caso.

Como antes foi referido esta doença é verificada em quase duas pessoas em cem e, pelo que sabemos, parece ser uma doença mais prevalente do que é na realidade.

Procure ajuda especializada se começar a ter os sintomas mais conhecidos da depressão, para corretamente ser avaliada e ser tratada atempadamente, pois quanto mais tempo se vive com a doença, mais difícil se torna sobreviver a ela!

 

Pedro Garrido – Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

Natal e Compaixão

O Natal é uma época em que a tendência natural para a compaixão parece emergir com mais força. As razões para este fenómeno serão com certeza muitas e de vária ordem, sociais, culturais, religiosas, familiares, psicológicas, … ter compaixão e ser solidário com os que menos têm, seja saúde, dinheiro, companhia… será natural durante todo o ano, mas quando o frio aperta, e o ambiente é evocativo de reunião familiar, e de outras celebrações, é compreensível que essa vontade de ajudar a que estes dias sejam menos penosos, esteja mais presente.

O Natal é, para uns, alegre e festivo, para outros, mais sombrio e, para alguns outros, chega a ser mesmo um pesadelo que se deseja que passe depressa. Esta época é sempre evocativa de memórias, boas, más ou mesmo ausentes, e remete-nos para uma série de lembranças, acompanhadas de um turbilhão de emoções e pensamentos associadas à época de natal, ou, sempre presentes, mas exacerbadas nesta altura. Porém, hoje não irei por aí.

Irei apenas deter-me na compaixão, isto é, na capacidade de compreender e sentir o sofrimento do outro, de empatizar com a sua experiência. A compaixão é algo que até certo ponto nos é inato, pois a nossa necessidade de vinculação e adaptação, intimamente ligadas à sobrevivência, a isso nos incitam. Mas também é algo que é aprendido e desenvolvido. Sabemos que os neurónios espelho têm um papel fundamental neste mecanismo. Ora, como é sabido, as vivências de cada um de nós são inúmeras e as aprendizagens da realidade que vamos fazendo desde que nascemos, as defesas que vamos criando, o espaço que nos foi dado ou não, para nós e para os outros, vão-nos diferenciando e fazendo com que vivamos a compaixão, tal como muitos outros sentimentos, de forma diversa.

A compaixão não está ligada a qualquer sentimento, expectativa ou necessidade de retorno. A compaixão é uma vivência “com” o outro, “junto” do outro, e não uma vivência do próprio “para” o outro. Não há dádiva, nem dívida, há companhia, há partilha, e é esse movimento de estar com o sofrimento do outro que será motor de algo mais.

Porque nem sempre é fácil acompanhar o sofrimento do outro?

Porque ter compaixão é estarmos em contacto com as nossas próprias vulnerabilidades, é sentirmos as fragilidades inerentes ao nosso ser particular e ao ser humano em geral, das quais tantas vezes queremos escapar e esquecer.

Por outro lado, porque queremos, por vezes, ajudar compulsivamente?

Porque, para evitarmos entrar em contacto com as nossas próprias vulnerabilidades, optamos por acudir às vulnerabilidades dos outros, numa tentativa de nos sentirmos mais fortes e superiores, ao mesmo tempo que nos esquecemos de nós. Este é um claro sinal de que estamos a fazer um duplo mau trabalho: o primeiro connosco e o segundo com os outros.

Buda diz: «Se a sua compaixão não o incluir a si, ela está incompleta»

Em termos psicológicos, o primeiro alvo de compaixão deverá ser o próprio.

Que amigo poderá ser para os outros se você não consegue ser o seu melhor amigo?Que ajuda poderá prestar se não se sabe ajudar a si mesmo?

Quando a ajuda aos outros está a substituir a ajuda e atenção que deveria dar a si próprio, irá esperar reconhecimento, agradecimento, ou irá zangar-se ou deprimir-se quando tal não se verificar. Este é um sinal claro de que não está a ter compaixão por si, e que não está a saber ter compaixão genuína pelos outros. Está sim a utilizá-los como suporte a si, à sua autoestima, à sua fragilidade que deveria ser atendida, e ser o seu primeiro alvo de compaixão.

Neste Natal, ouça-se com compaixão, aceite-se, prescinda de controlar o que não pode, o que não deve (filhos, amigos, namorados, familiares) e meta mãos à obra nas transformações que estão ao seu alcance e que sente que deve fazer para se reequilibrar. Só estando psicologicamente bem consigo, poderá amar os outros prescindindo de controle ou retribuição e tendo verdadeira compaixão.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

 

“Christmas Blues” A tristeza que vem com o frio

Christmas blues

Alguns estudos referem que cerca de 20 a 30 % da população ocidental sofre de depressão de natal ou “Christmas Blues”, sentindo nesta altura de festas alguma angústia, desamparo e ansiedade que se assemelham a um quadro depressivo. 

As razões podem ser várias e diversas, desde uma maior pressão para o consumo, ao reavivar de saudades de entes queridos já falecidos, ou mesmo solidão.

De facto, nesta época, as famílias são tremendamente pressionadas para maiores gastos financeiros em prendas e na preparação de festas que em qualquer outra época do ano.

As “exigências” interiorizadas pelas pessoas e que advêm da pressão do marketing mediático obrigam-nas a um périplo por várias e diferentes lojas na busca da prenda ideal para cada familiar ou amigo, para o filho deste e para a sobrinha daquele. Fazem-se listas compras e calculam-se orçamentos, planeiam-se dias com roteiros para determinadas compras e reservam-se outros para tantas outras. O suposto espírito altruísta do Natal transforma-se numa azáfama stressante e cansativa para cumprir um determinado roteiro de compras intermináveis em lojas apinhadas de gente igualmente impaciente que a noite de Natal chegue, as lojas fechem e as compras acabem.

Em momentos de lucidez acabamos por parar e perceber que o espirito do Natal foi subvertido, que o propósito do Natal não é esta vertigem consumista, e a consciência disto pode trazer-nos sentimentos de tristeza e culpa imediatamente após uma corrida desenfreada, esgotante e cheia de boas intenções às últimas compras.

Por outro lado, a época de Natal é tipificada como a festa em que a família se reúne, se revê e confraterniza, mas se você tiver perdido um ente querido há pouco tempo, é natural que esta época reavive os seus sentimentos de luto e de saudade e que, dependendo do caso, podem ser avassaladores.

Devemos ainda recordar-nos que, num mundo que se “globalizou”, não é raro que hajam familiares emigrados em países longínquos e que não podem estar presentes, e essa ausência pode ser antecipada e sentida com tristeza e saudade.

Sabemos também que uma parte significativa da população idosa vive sozinha, muitas vezes sem grande apoio familiar e em situações de desamparo em que os sentimentos de solidão física e afectiva que se tornam mais evidentes nesta época festiva em que seria suposto sentirem-se mais amados e apoiados.

Frequentemente, os sentimentos de tristeza, culpa e ansiedade que são sentidos nesta época têm a ver com um desfasamento entre as expectativas que interiorizámos do que deveria ser o Natal – enquanto festa religiosa e de comunhão de afectos – e aquilo que muitas vezes acabamos por vivenciar.

De facto, ninguém deseja que o Natal se transforme em dias de stress financeiro e fúria consumista, ninguém espera que uma época universalmente festiva traga um reviver da mágoa dos lutos mais difíceis ou uma consciência ainda mais aguda duma situação de solidão e de desamparo.

As expectativas depositadas são frequentemente melhores do que muitas vezes a vida nos traz e este desfasamento pode trazer sentimentos legítimos de dor e frustração.

 

Os dados do National Institute of Health, nos Estados Unidos da América, apontam o Natal como o período do ano no qual há uma incidência maior de depressão.

Mas, de facto, não é claro para todos os investigadores que exista um aumento da incidência de Depressão no Natal ou se este aumento da incidência resulta de um certo número de factores que nem sempre são levados em conta.

Além da maior frequência de episódios depressivos no contexto da Doença Afectiva Sazonal (*), é nos meses de inverno que ocorrem mais intercorrências infecciosas, o que condiciona com uma maior morbilidade e mortalidade em pessoas idosas com outras patologias orgânicas associadas, nomeadamente diabetes e/ou doenças cardiovasculares.

Estes episódios de agravamento clínico podem despoletar quadros depressivos ou agravar depressões pré-existentes.

Por outro lado, sabe-se que a incidência de suicídio diminui nos meses de inverno e aumenta com a chegada da primavera.

Os dados que existem sobre o “Christmas blues”, essa tristeza sazonal por altura do Natal, são vagos e pouco precisos, sobretudo porque não está propriamente catalogado como uma patologia mental.

Mas esta tristeza de Natal, apesar de ter sintomas sobreponíveis aos de uma depressão, não significa necessariamente que se trate de um quadro depressivo.

O “Christmas blues” é habitualmente passageiro e não tende a evoluir para um quadro clínico de depressão.

         Passada a época festiva e com o retomar das rotinas habituais do dia-a-dia, estes sentimentos de tristeza tendem a desvanecer-se e a remitir naturalmente.

No entanto, o “Christmas Blues” pode mimetizar uma depressão suave, além de que ocorre na mesma época da Doença Afectiva Sazonal. (*)

No “Christmas Blues”, tipicamente, os sintomas de tristeza e ansiedade não se intensificam ou agravam, e não se prolongam no tempo.

Assim, se a tristeza e a ansiedade se intensificarem ou se prolongarem no tempo deverá consultar o seu médico de família e expor a situação. De facto, pode então tratar-se dum episódio de Doença Afectiva Sazonal ou pode a época natalícia ter contribuído como factor desencadeante, entre outros acontecimentos de vida, para o despoletar de um quadro depressivo que pode merecer cuidados médicos e/ou um acompanhamento psicoterapêutico adequado.

 

(*) Doença Afectiva Sazonal – Tipo de Depressão na qual os episódios depressivos recorrem anualmente, geralmente durante os meses de inverno, e em cujo tratamento está a indicada a Fototerapia.

 

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

“Amor nos tempos de cólera”, a MARTA e um exercício

amor em tpos cólera

Gabriel Garcia-Márquez escreveu uma das que é considerada unanimemente, uma das obras-primas da literatura. Remete-nos para um mundo intenso de emoções, de sensações, de um tanto que (todos) temos cá dentro, nos limites da nossa pele.

Ainda assim, para hoje, atrevo-me apenas a divagar sobre o título. Há toda uma riqueza nestas palavras, o amor nos tempos de cólera. Permitam-me, por conforto e conveniência para o tema, deixar de lado a cólera enquanto enfermidade, para nos centrarmos na cólera enquanto emoção intensa de raiva e zanga.

Já sabemos que, para bem da nossa saúde mental, as emoções são para ser vividas e experienciadas de forma segura e saudável. Vários autores tentam chegar a um consenso relativamente as emoções que podemos designar como transversais. Façamos a ressalva, estamos a falar de emoções e não da sua expressão facial, e estamos propositadamente a evitar termos como “universais” e “primárias”, de pendor teórico bastante marcado.

Consideremos então, novamente por conveniência, o seguinte rol de emoções transversais, ao qual (a quem) carinhosamente chamaremos MARTA.

  • Medo
  • Alegria
  • Raiva (há quem prefira “zanga”, mas por conforto para a MARTA, iremos manter raiva)
  • Tristeza
  • Atracção (e o seu oposto, a repulsa)

Ora bem, nem todos temos MARTAs na nossa vida, pelo menos da forma mais plena. Sugiro um rápido (mas nem por isso mais fácil) exercício. Ordene as emoções que aqui abordamos consoante a frequência com as experiencia (note que experienciar e expressar sao aspectos diferentes, por exemplo, pode estar zangado com um familiar mas não o expressar). Ja está? Repare que nem sempre é nítido acedermos ao nosso estado emocional (salvo em momentos de assinalável intensidade). Este é o primeiro passo do exercício.

O segundo desafio consiste em tentar perceber, ao longo da sua vida, a sua configuração emocional da MARTA se alterou, ou seja, se as emoções que experiencia mais frequentemente têm sido as mesmas (ou qual foi a direcção da mudança). Para os mais ávidos do registo mais pragmático, uma linha horizontal separada a intervalos regulares (5 ou 10 anos) pode ser uma boa ideia. Este é o segundo passo do exercício.

Na primeira parte do exercício, terá ficado com uma sequência de emoções, seja MARTA ou qualquer outra combinação possível, em que a primeira será a emoção que reconhece como sendo aquela que mais facilmente vivência (independentemente de a expressar, ou não), e dessa até chegar à última, que será a emoção que reconhece como mais dificilmente experienciada.

É importante estar atento. A tarefa é a de se permitir tomar maior consciência das emoções que ficaram em 4o e 5o lugar. Regra geral, são emoções que não nos permitimos sentir, ou através dos nossos diálogos internos, das expectativas e das regras vigentes na sociedade (todos “sabemos” que um homem não chora, uma menina não se zanga, etc..), na família, na escola, ou num determinado grupo ao qual queremos pertencer. Portanto, é útil apercebermo-nos que nos foi permitido expressar? E, por outro lado, o que nos foi proibido expressar?

No outro extremo, as emoções que conquistaram o 1o e 2o lugar são, muito possivelmente, aquelas que estão a ser experienciadas em regime de sobre-compensação. Ou seja, a sua vivência permite, eventualmente, mascara, iludir ou até não sentir as emoções que ficaram no fim da tabela. Não se quer com isto dizer que não estejamos de facto a experiênciar essa emoção, apenas estamos a focar na frequência com que essa vivência pode estar a substituir a expressão da emoção original. Esta emoção original seria aquela que, efectivamente, a pessoa exprimiria de forma plena e que lhe permitiria satisfazer a necessidade do momento que conduziu ao seu aparecimento.

Por exemplo, se colocou a raiva no último lugar da sua matriz emocional, e a tristeza em primeiro ou segundo lugar, poderíamos imaginar que em determinadas situações em que se poderia ter zangado (a raiva é uma emoção bastante activa em termos fisiológicos), se terá entristecido (sendo a tristeza uma emoção menos activa, e potencialmente mais lúcida e nítida).

Em complemento, o momento de retrospectiva do exercício apura-nos a capacidade de reflexão sobre os nossos momentos emocionais ao longo da vida (os mais marcantes, mas também os que correspondem a alturas menos intensas).

Esta movimentação pode ser relevante para nos darmos conta de eventuais padrões de expressão emocional num determinado sistema (família, escola, grupos de pares, etc.). Identificar estes padrões idealizados permite-nos também aumentar a consciência dos padrões proibidos, ao longo do tempo. Se tiver havido mudança na configuração da sua matriz emocional, poderá depreender-se que, ao longo do tempo, a pessoa foi capaz de flexibilizar a sua vivência emocional. Por outro lado, se a sua MARTA se manteve mais ou menos constante, tenha em atenção que uma configuração mais rígida inflexível poderá estar mais associada a uma menor capacidade de regulação de experiências emocionais e, eventualmente, a uma menor satisfação.

Voltemos a Gabriel, confirmando que o amor nos tempos de cólera também pode ser a tristeza nos momentos de medo ou a alegria nos momentos de tristeza. Apresentemos estas possibilidades às nossas vivências, permitamo-nos navegar entre o pode ser intenso e marcante, mas também plácido e sereno.

No fundo, pretendemos caminhar no sentido de aceder de forma segura ao mais autêntico das nossas emoções e, assim, saber de que precisamos para sermos mais plenos …

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

Analfabetos dos “BONS”

Analfabetos dos BONS

Para escrever é preciso saber as letras do alfabeto e conjugá-las em grafemas, sílabas e depois palavras. Para conseguir escrever o BOM na vida é preciso atenção, ao olhar de forma completa para o que acontece. Só assim conseguiremos identificar o que é bom, agarrá-lo e registá-lo na nossa história.

Quando as pessoas procuram psicoterapia já se encontram, há muito, num ciclo de coisas que não são boas e que parecem não ter fim. Um profissional ajuda a processar de forma completa ciclos de dor na vida da pessoa, e, depois disto, surge inevitavelmente o BOM.

Quando habituamos a nossa mente a olhar demasiado para o desagradável (mau) é desenvolvido uma espécie de carril que conduz quase tudo para lá. Uma espécie de adição que se torna cegueira e, se a luz não entra, o caminho não se encontra. Precisamos então de ajuda para olhar mais e melhor, porque a solidão e a vergonha não são facilitadores desta tarefa e raramente permitem a alfabetização do bom.

Construir este caminho através da abertura para olhar mais além e com palavras que nos ajudem a dar significado ao que vivemos e vemos de bom, pode ser uma forma eficaz de combater a escuridão do mau (e, se quiser, de caminhar para o bem-estar e felicidade).

Bom e mau coexistem na vida e isto é reconfortante na aridez de uma travessia difícil ou nas simples frustrações do quotidiano. Mas é frequente termos, primeiro, dificuldade em encontrar as palavras agradáveis para expressar as coisas boas e depois, termos dificuldade em integrá-las na relação connosco próprios e com os outros. Faça o seguinte exercício: tente dar 3 adjectivos a algo de agradável que lhe aconteceu e 3 a algo de desagradável (e não vale “bom” nem “mau”) e depois tente sentir o impacto dessas palavras em si. Possivelmente sentirá mais dificuldade em encontrar as palavras e encaixá-las no bom do que no mau; encontrar, por falta de treino, e encaixar, por sentir algum receio em associá-las a si ou à experiência. Temos medo do bom porque não o queremos perder. Mas o mais triste é que perdemos oportunidades de nos sentirmos realmente bonitos, bons, importantes, livres, cheios, queridos (ou outra coisa qualquer) quando nem sequer as aceitámos no instante presente.

Também o balanço entre o passado, o presente e a perspectiva de futuro é muito importante. Mesmo quando não consegue encontrar nada de bom na sua vida que o(a) faça perspectivar-se bem no futuro, existem rasgos de luz na sua história que só precisam de ser vistos e identificados como tal. E não estou a falar do entusiasmo positivista papagueado sob a forma de incentivo motivacional que nos quer fazer acreditar que o mundo está aos nossos pés; isto, para além de desvalidante da nossa história, é tão dessincronizado da realidade que roça o ridículo.

 Para se ver e dar um significado ao bom, precisamos de partir do princípio que existem mais do que as sensações de mau que nos limitam num dado momento presente, que este não é o fim da história. Atenção e foco em toda a linha da vida! E se tivermos dificuldade em vê-la, pode ajudar olharmos para o alto; é que quando olhamos o céu damo-nos conta do quanto somos pequenos e que existe uma imensidão do universo que temos para conhecer. Depois baixamos o olhar e vislumbramos a nossa vida futura como um universo a viver e em que com certeza vai existir o Bom. Alguns chamam a isto: Esperança! Esta companhia que se empoleira na Alma e canta uma melodia sem palavras, como escreveu Emily Dickinson. É como um pássaro que não podemos aprisionar no nosso mundo interior porque corremos o risco dele achar que não é um bom lugar para se viver.

Não somos nem patetas alegres, nem tristes miseráveis. A nossa vida não é cor-de-rosa nem preta. Somos um todo. Somos o que somos com tudo o que nos assiste; o bom e o menos bom! E é assim que se faz a vida; a ganhar, a perder, a chorar, a rir, a celebrar e a deixar ir. Esta é que é uma vida realizada e não idealizada. Alfabetize os seus carris e verá a sua vida escrita de forma mais completa e livre!

Rita dos Santos Duarte – Psicóloga e Psicoterapeuta

A Nossa Saúde Mental

A nossa Saúde MentalSabemos que a fome mata nalgumas partes do mundo, duma forma que nada tem a ver com o que acontece nos chamados países desenvolvidos. As condições de saúde são outro dos grandes diferenciadores entre os países do chamado primeiro mundo e os países subdesenvolvidos. As grandes epidemias que dizimam milhares de vidas e os escassos recursos duma parte do planeta, não se comparam ao tipo de doenças e às condições sanitárias a que nós temos acesso. Nesta parte privilegiada do globo os problemas de saúde com que nos vemos confrontados estão, cada vez mais, associados a doenças que de alguma forma se podem prevenir introduzindo mudanças em hábitos comportamentais. Ou seja, vivemos num lugar e num tempo em que os nossos comportamentos assumem um papel preponderante na saúde que vamos tendo.

Não constitui hoje novidade que a actividade física regular e cuidados com a alimentação, assim como um estilo de vida saudável em ambientes pouco poluídos, constituem uma mais-valia para um percurso com saúde. A esperança de vida continua a aumentar, mas a consciência de que esse aumento de longevidade pode ser feito com tanto mais saúde, quanto nós enveredarmos por escolhas saudáveis, felizmente também.

Há contudo alguns aspectos que convém lembrar. Por um lado a hereditariedade e a genética têm uma palavra a dizer na longevidade e na forma como se desenvolvem algumas doenças. Por outro, a forma como vivemos é importante, não só para evitarmos algumas dessas doenças, como também porque podemos influenciar a altura ou a forma como elas se manifestam e a que velocidade e intensidade vão ou não infligir os seus danos.

Todos sabemos que “os acidentes acontecem”. Mas nunca antes tivemos tantas condições para prevenir alguns desses acidentes como actualmente. Não é seguramente saudável viver angustiado ou obcecado com a prevenção de acidentes, ou com o nosso estado de saúde, mas adquirir hábitos saudáveis, como uma nova rotina, e visitas regulares ao médico está ao nosso alcance.

Enquanto psicóloga clínica e psicoterapeuta, preocupo-me especialmente com a saúde mental. É curioso, pensarmos e darmos como certo que conseguimos treinar o corpo para fazer esta ou aquela habilidade (atletismo, ginástica, dança, malabarismo, tocar um instrumento musical, etc, etc) e termos dúvidas sobre como podemos treinar a nossa mente ou mudar alguns dos nossos comportamentos. Certo é que a plasticidade neuronal faz com que tal seja possível.

Em saúde mental também surgem problemas de doença que ocorrem por acidente, hereditariedade ou problemas genéticos, mas a grande parte dos problemas de saúde mental que nos afectam ao longo da vida surgem de questões ambientais/educacionais/comportamentais e, na grande maioria dos casos, da combinação de factores de vária ordem que influenciam a forma como nos sentimos e como percepcionamos e pensamos o que nos rodeia, isto é afectam as nossa crenças sobre nós e os outros, as nossa vivências e o modo como gerimos as nossas emoções.

Quer na doença mental, quer na recuperação e manutenção da saúde psicológica, é possível melhorar através de novas formas de olhar a doença, a saúde, de nos olharmos a nós próprios, os outros, a existência, a vida, ou seja, através de mudanças com as quais nos podemos comprometer.

Todos nós necessitamos de sermos únicos e ao mesmo tempo de nos sentirmos próximos, ou seja, a nossa necessidade de diferenciação é tão importante como a nossa necessidade de intimidade. A nossa necessidade de paz e sossego é tão importante quanto a nossa necessidade de actividade e procura. A nossa necessidade de estabilidade e rotina é tão necessária quanto a nossa necessidade de inovação e aventura. Se estas e várias outras necessidades são, de alguma forma comuns a toda a gente, o seu grau de intensidade, ou a altura em que preferimos habitar mais um lado ou outro deste contínuo, varia de pessoa para pessoa e na mesma pessoa, varia ao longo do tempo e em diferentes fases da vida.

Evoluir em saúde mental é saber estar atento a essas necessidades, saber escutar as nossas emoções, ouvir as diferentes partes de nós que muitas vezes nos pedem coisas opostas, viver as contradições, compreender porque existem e aprender a dialogar e regular esse mundo interior que habitamos ao mesmo tempo que regulamos diferenciadamente as nossas interacções com o nosso mundo exterior.

Melhorar a nossa saúde mental é aumentar o grau de conhecimento sobre nós e o grau de liberdade e responsabilidade pelas escolhas que fazemos, tornando-as verdadeiramente nossas.

Viver com saúde mental, é conseguirmos conviver com um mundo infinitamente grande e muito maior do que nós (macroscópico), sem, por isso, nos sentirmos insignificantes e, simultaneamente conseguirmos conviver com um mundo infinitamente mais pequeno que nós (microscópico), sem que isso nos faça sentir Reis ou donos do Mundo.

Abraçar a nossa saúde mental é conseguirmos interagir com o que nos rodeia e olhar para nós simultaneamente, como uma simples nota musical, de timbre, altura e intensidade única ou como uma gota de tinta, de brilho, cor e tonalidade específica, mas também como uma linha melódica ou um movimento de pincel, e ainda, e também, como um todo composto por partes; uma sinfonia em curso, ou um quadro que se vai transformando, como um bailado de nós connosco e de nós com os outros.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapêuta

Perda ou Transformação?

Na minha prática clínica tenho-me deparado com uma grande dificuldade dos meus pacientes em expressarem desacordo, mágoa, ressentimento, ou agirem de formas contrárias àquilo que sentem que são as expectativas ou desejos de outros significativos.
Ao explorar o que é que receiam que aconteça se se expressarem de forma congruente com o que estão a sentir, surge frequentemente o medo de perder o outro, que o outro não suporte a crítica ou o desacordo e que haja uma ruptura na relação.
Um trabalho útil com estes pacientes é treinar a assertividade, explorando formas de nos afirmarmos perante estes outros significativos de uma forma cuidadosa que melindre o outro o menos possível; mas a realidade é que estes pacientes não deixam de ter algum fundamento no seu receio, frequentemente os primeiros movimentos de auto-afirmação são de facto mal recebidos do outro lado.

A reflexão que vos venho propor é até que ponto é que esta reacção menos positiva do outro implica necessariamente perda ou, pelo contrário, potencia transformação da relação.
Não sejamos utópicos, se introduzo uma dinâmica nova na relação (por exemplo expressar mágoa por a minha opinião não ter sido levada em conta numa decisão com implicações para os dois), não posso esperar que o outro mantenha a mesma postura, ele terá que digerir a novidade e precisaremos os dois de um período de ajustamento à nova dinâmica, ou de um período de negociação de uma terceira dinâmica, construída em conjunto, que responda de forma mais equilibrada às necessidades de ambos. Ou seja, preciso dar espaço ao outro para que ele me devolva o ponto de vista dele sobre a situação que desencadeou o problema, como é que ele lida com esta mudança no sistema que eu estou a propor, e que condições é que ele precisaria ter satisfeitas para conseguir de forma mais tranquila responder à minha necessidade (por exemplo, o outro poderia devolver que não se tinha apercebido que eu tinha uma opinião diferente, mas que de facto era importante para ele que eu estivesse confortável com a decisão e precisaria por isso que eu passasse a expressar as minhas opiniões com mais clareza para ele perceber que há ali uma opinião contrária que precisa ser levada em conta).

E pensarão: “mas comigo isto não funciona assim, o outro não vai reagir tão bem”. Talvez tenham razão, é provável que a primeira reacção seja de defesa e de desagrado pelo comentário, mas lá está o tal período de ajustamento e de negociação, em que o treino de assertividade referido inicialmente tem um papel importante no mantermo-nos afirmativos das nossas necessidades e direitos por um lado, e ao mesmo tempo abertos a perceber o ponto de vista do outro, que elementos é que estão a dificultar a compreensão da mensagem de ambos os lados, e como é que podemos atingir um equilíbrio entre aquilo de que cada um não abre mão e no que estamos disponíveis para ceder.

Joana Fojo Ferreira – Psicóloga e Psicoterapeuta

Setembro e a Primavera

Setembro e a primavera

«Outono é outra primavera, cada folha uma flor.»
Albert Camus.

Chega Setembro e, muitas vezes com ele, surge uma sombra, um negrume…
Esta sensação, na maioria dos casos, felizmente, corresponde apenas à elipse aparente do sol, responsável pelas estações do ano, ou seja, neste caso, setembro trás consigo o equinócio que anuncia o final do verão e o início do outono, e trás também outras vibrações e humores.

Se na primavera tudo renasce, a alegria parece despontar juntamente com as folhas, e, até um sorriso de esperança pode surgir quando tudo anteriormente parecia estar mal; no outono, a queda da folha vem acompanhada duma sensação de recolhimento, de despedida dum verão que já lá vai, e, quantas vezes, duma sensação de perda ou de aprisionamento no dia-a-dia.

Se, para algumas pessoas, ou nalgumas fases da vida, regressar à rotina significa “descansar das férias”, pôr em prática ideias que foram germinando e crescendo ao longo da primavera e verão, um período de baterias carregadas que espalharão a sua energia pelos próximos meses; para outras pessoas, ou, noutras alturas, o regresso não entusiasma. E não é apenas pela saudade das férias, ou dos dias grandes, ou pelo retomar dos horários e responsabilidades que acompanham Setembro, mas sim, por uma quase certeza de que, afinal, nunca nos chegámos a libertar dum peso que nos encurva a alma e vive connosco.

Receio que, quando estamos perante este último quadro, seja sinal de que não fizemos as “limpezas de primavera”, ou seja, reencontrámos uma sensação que há muito nos acompanha, mas da qual nos tínhamos conseguido afastar durante a primavera e verão. Como se a primavera tivesse de facto trazido esperança, e que, mais uma vez, tivéssemos acreditado que tudo iria mudar sem necessitarmos de arrumar, limpar, fazer mudanças… É que a esperança pode ser tão amiga quanto adversária: amiga quando já nada podemos fazer, quando tudo saiu do nosso controlo e só ela nos resta; mas adversária, quando nos trava e impede de agir porque nos agarramos a ela, não conseguindo ver que ela está em nós, no que fizermos de, e por nós.

Agora, ao olharmos os dias mais curtos e a chuva a não conseguir soltar o cheiro a terra e relva cortada, mas apenas mostrar o sujo acumulado, apercebemo-nos de que nada mudou, estamos no mesmo sítio outra vez, sem sol, sem verde, sem azul, e, quantas vezes, também sem esperança. Apenas “nós e a nossa condição”.

Se Setembro se apoderou de si, não apenas com o seu vento fresco, cores de mel, uvas e vinho, sabores caseiros e reconfortantes, nem tão-somente com alguma nostalgia ou negrume, mas sim com uma densidade espessa e pegajosa que lhe tira o ar, não espere pela próxima “limpeza de primavera” para fazer arrumações e alterações.

Aproveite esta época de regresso para se revisitar a si própria/o, desarrumar o que parecia arrumado e não está, reciclar o que parecia perdido, deitar fora o que já não interessa, e habitar o vazio que encontrar. Assim, quando chegar a próxima primavera, poderá começar a redecorar o seu interior e renascer de facto. É necessário limpar o terreno e tratar da terra para que algo possa florir. Este trabalho requer ajuda profissional.

Não se convença de que “é sempre assim”, ou “não há nada a fazer”, de que “só os fracos procuram ajuda” ou de que “o tempo tudo cura”. Falar com um psicoterapeuta pode fazer toda a diferença; haverá situações em que poderá necessitar de medicação, haverá outras em que tal não será necessário, mas essa não deverá ser uma decisão sua, ou, apenas sua. E como é bom poder e conseguir partilhar fardos…

Afinal, Setembro é um mês de recomeços, em que também algo poderá nascer…

Iniciei este texto com uma frase de Albert Camus, deixo-vos com alguns versos do poema “A mão no arado” em “O problema da habitação” de Ruy Belo

«Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
(…)
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão …»

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Quando a resposta é: “Não sei”

Quando a resposta é não sei

Em psicoterapia, ao colocar uma determinada questão a um paciente, deparamo-nos muitas vezes com a resposta: “Não sei”. Até certo ponto, costumo olhar para este “não sei” como se estivesse perante um silêncio, em que me pergunto: “Será um silêncio cheio? ou um silêncio vazio?”. Da mesma forma me interrogo sobre se estarei face a um “não sei” cheio de sabedoria ou a um “não sei” oco ou temeroso.

O “não sei” interpõe uma distância cognitiva entre a pessoa e a possibilidade de saber/conhecer, isto é, entre o Eu e a responsabilidade de reflectir e construir um significado/solução. Mas interpõe também, uma barreira afectiva entre o Eu e a possibilidade de sentir. De sentir algo, tantas vezes doloroso, em que se receia/recusa mergulhar.

Ao terapeuta cabe perceber se está perante uma resposta de zanga, de medo, de vergonha, ou de admiração, face a uma questão que foi percebida como intrusiva, dolorosa, ou desafiante. Poderá ser uma resposta que exprime um conflito entre o desejo e o receio de saber ou expressar, ou mesmo de tornar consciente o que de certa forma já foi pressentido.                                                                                 Contudo, como sabemos, por vezes “não sei” é apenas “não sei”.

Em vez de se olhar o “não sei” exclusivamente como algo que se fecha, podemos vê-lo como algo que se abre. Primeiro teremos de bater à porta, entreabrindo-a, como que a pedir licença para entrar, sabendo que nos temos que mostrar dignos de confiança e validar esse depósito. E finalmente utilizar essa porta como passagem comunicativa por ambos aceite. Afinal, “não saber” é a primeira condição para a investigação e a aprendizagem. Há que mobilizar o potencial do “não sei” para a vontade de saber. Oferecer hipotéticas interpretações é uma possibilidade, mas deve ser feita com as devidas cautelas, sendo uma delas a clara admissão de que Eu não sou Tu. O terapeuta não pode aceder ao mundo interno do paciente se este não lho facultar, nem julgar-se sabedor do que não sabe.

Talvez antes de nos precipitarmos na sugestão de interpretações possamos explorar o âmbito do “não sei” e esperar…

Estará o paciente a dizer-nos:

1- “Não Sei!” (nem quero saber e não estou interessado no tema)?, Ou

2-“nãao ssei…”, (mas isso faz-me lembrar, sentir, pensar…)?, Ou

3- “não sei?” (que curioso nunca tinha pensado nisso, acha mesmo que eu poderei saber?)? Ou

4-“não sei”, quase inaudível (penso que sei, mas ir por aí causa-me dor…)?, ou

5-“não sei…” (talvez saiba, mas se eu ousasse dizer, o que iria pensar de mim ou dos meus?)?, ou

6-“não Sei” (sei, mas não confio o suficiente para dizer)?

O primeiro “Não Sei!” é uma porta que se fecha, com alguma zanga. É claramente uma defesa, vinda dum local de medo ou de negação. Indica que é cedo para ir por aí, a questão é sentida como intrusiva.

O segundo e o terceiro “não sei” estão cheios de potencial, e são uma porta entreaberta que suscita a curiosidade, (embora possam não estar isentos de receio) o primeiro destes dois, “nãao ssei…”, sendo mais introspetivo, convida a um silêncio do terapeuta, que ao criar espaço, permite a viagem interior do paciente. O segundo “não sei?” talvez necessite de um ligeiro encorajamento por parte do terapeuta, por exemplo, um sorriso de assentimento, permitindo depois que o silêncio se instale e possibilite a reflexão e elaboração do cliente.

O quarto “não sei”, parece extremamente vulnerável e necessita de validação empática pelo receio da dor que possa causar o que se venha a descobrir. Neste ponto, é fundamental que o terapeuta mostre reconhecer e valide as partes do Eu em conflito interno.

Os dois últimos “não sei” parecem indicar um conflito entre a vontade de abordar o tema e o receio de o fazer. São um sinal de que a relação terapêutica ainda não é sentida como verdadeiramente segura. Apontam para a necessidade de trabalhar e aprofundar a relação antes de prosseguir.

A confirmar este tactear e sentir do terapeuta, e a importância da sua responsividade mediante o que avalia, temos o facto de a neurociência nos mostrar que a visão de soluções para os problemas parece dar-se quando a parte direita do cérebro trabalha activamente e o lado esquerdo fica mais em repouso, deixando de prestar demasiada atenção aos estímulos externos, sobretudo aos visuais.

Assim, quando presenciamos um “não sei”, qualquer que ele seja, a nossa atenção deve focar-se na entoação e nas pistas não-verbais. Se o “não sei” é acompanhado de um olhar vago, que se afasta do nosso e paira no vazio, podemos ver aí uma oportunidade de não dizermos nada e de deixar que o cliente entre no seu mundo emocional. Se esse encontro for produtivo, poderemos observar uma reação emocional, ou, pode acontecer que o hemisfério esquerdo se active indo em “socorro” do direito, tentando dar sentido à recente sensação. Aqui, o contacto visual e a comunicação verbal serão então restabelecidas e é provável que assistamos a um momento de descoberta, ou, pelo menos, ao abrir claro da porta.

Ao escutarmos “não sei”, teremos muitas vezes que tomar decisões rápidas sobre o que fazer (ou não fazer). Se estiverem reunidas as condições para que a melhor acção seja o silêncio, o terapeuta deve respeitá-lo, permitindo ao cliente encontrar-se com ele próprio e descobrir (-se) sentindo-se acompanhado e seguro nessa viagem.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta