Os dias da Pandemia – II

Andrà tutto bene

“Tudo vai ficar bem”

 

Uma espera estóica no hospital, os enfermeiros vêem-na quando entram de serviço ou saem de vela, arranjaram-lhe um cantinho num corredor de acesso à Unidade de Cuidados Intensivos, porque a sala de espera ia ser demasiado perigosa para quem decidiu ir a casa apenas para tomar banho e trazer um farnel, e volta todos os dias para aquela cadeira de plástico, para aquele corredor, ermo e impessoal, e ali fica à espera de notícias do marido.

“Há uma semana ele estava bem, teve uma febrícula – mas nada de especial – e foi fazer a análise que deu positiva e voltou para casa porque não tinha mais que uma febrícula.”

“Ao 3º dia começou com tosse, uma tosse persistente, mas pelo telefone disseram-lhe que esperasse. Nessa noite acordei a ouvi-lo respirar, sentado na cama, parecia que não havia ar que chegasse, parecia que o ar todo do mundo não entrava por mais esforço que ele fizesse.”

“Chegámos ao hospital e vieram dizer-me que tiveram que o pôr em coma para que ele se adaptasse à máquina que o faz respirar…”

Celeste e Alberto não tiveram filhos. Ela não podia.

Hoje estava sozinha no mundo.

Alberto, que nunca a deixara nem a tinha traído, estava lá dentro, atrás daquelas portas verdes claras com janelas foscas, a alma entregue a Deus, enquanto os médicos e enfermeiros tentavam salvar-lhe o corpo.

Celeste não cultivara o hábito de rezar, mas pedia a Deus em pensamento e coração.

Não tinha telemóvel e, se tivesse, não tinha a quem telefonar.

Limitava-se a olhar para o corredor e suspirava fundo.

Um dia uma enfermeira puxou uma cadeira, sentou-se perto dela e começaram a conversar.

De imediato, Celeste perguntou:

– Como está ele? Acha que ele vai salvar-se?

– Olhe, não sei. Não quero dizer-lhe nem que sim, nem que não. Já está com o ventilador vai para 4 dias e até agora nada. Vamos ver o que vai acontecer…

– Eu sei que ele vai sair dali pelo seu próprio pé! – respondeu ela quase zangada com a enfermeira.

Celeste ficou subitamente com os olhos marejados de emoção e voltou-se para a enfermeira num rompante de raiva:

– Você não pode fazer isso, ouviu?!

 A enfermeira olhou-a surpreendida.

– Você não pode vir aqui e tentar roubar-me a única coisa que eu tenho agora que é a esperança que ele recupere! É a única coisa que me faz respirar! É a única coisa que me conforta à noite quando tento dormir! Tudo desmoronou à minha volta em menos de um mês! Ele teve que fechar a pastelaria, eu que o ajudava também passei a ficar em casa, ele andava aflito a dizer que só nos íamos aguentar uns dois meses, foi ao banco pedir um empréstimo e dizem-lhe que só lhe vão dar metade do que ele pediu e é se derem, faz quase um mês e ainda não tivemos resposta do banco, há uma semana começa com febre e três dias depois entrou aqui e aqui ficou. Eu não tenho mais ninguém! Você está a ouvir-me?! – e desatou a chorar num pranto incontrolável – “Sra. Enfermeira, eu não tenho mais nada! Só tenho este banquinho que por sinal é vosso, e imagino o médico ou um de vocês sair por ali com um sorriso e dizer-me que ele já está a respirar por ele próprio.”

A enfermeira pusera-se de pé e agora abraçava-a com força e pensava para ela própria que passamos pelas pessoas e não fazemos a mais pequena ideia do que vai na alma de cada um.

E tomou a decisão de não tirar a Celeste a única coisa que ainda lhe restava:

– Olhe, Dona Celeste. Eu não disse que estava a correr mal… Já vi pessoas ficarem duas semanas em coma induzido e recuperam completamente. A procissão ainda vai no adro! Não há nada que nos diga que ele não possa melhorar! Ele vai melhorar! Tenha calma! Estamos a fazer tudo por isso! Ele vai melhorar!

Celeste tentava abrir a sua bolsa para tirar um lenço de papel, as suas mãos tremiam de medo, de angústia, de coragem, mas também de esperança.

A enfermeira resgatou-lhe a bolsa das mãos, abriu-a, tirou um lenço de papel e quando ia tentar limpar-lhe as lágrimas Celeste reagiu e disse-lhe:

– Eu faço isso! – respondeu tirando-lhe o lenço das mãos – Não me leve a mal. Eu não sei o que me deu… Sei que vocês saem daqui estoirados e eu ainda me fui zangar consigo.

A enfermeira sorriu e disse:

– Vai ficar tudo bem.

– Sim – rematou Celeste – E desculpe. Às vezes temos que nos zangar com os anjos para que Deus nos dê ouvidos.

Naquele momento, a Esperança uniu as duas.

Era um sentimento mais poderoso do que a simples ideia de que Alberto iria melhorar. Era a certeza de que isso iria acontecer conquanto ambas continuassem a lutar por isso.

Por vezes, o que faz com que consigamos continuar com as nossas vidas, é encontrar um significado que justifique continuarmos a lutar por sobreviver.

Quando encontramos um significado para a nossa vida, para os nossos objectivos, para os nossos sonhos, esse significado irá legitimar o nosso caminho e torná-lo possível, mesmo que todas as circunstâncias que nos rodeiam afirmem o contrário.

É este encontrar de significado que faz com que as pessoas se superem em momentos de enorme adversidade.

No caso de Celeste, a Esperança foi o instrumento que encontrou para se agarrar à vida, para não desmoronar perante a possibilidade do seu marido não se salvar. Enquanto Alberto respirar, ela não só não se afoga na antecipação da dor duma possível perda, como mantém inquebrantável a força interior necessária para obliterar da sua consciência o luto enquanto este não for inevitável.

Sem Esperança, talvez Celeste não aguentasse mais do que algumas horas.

Freidrich Nietzsche dizia que “aquele que tem uma razão para viver, consegue suportar quase tudo”, uma frase que o pioneiro psiquiatra existencialista Viktor Frankl repetia com frequência.

Viktor Frankl acreditava que “o amor é o objectivo maior e mais alto a que o Homem pode aspirar”.

Mas o que lhe permitiu a ele, Viktor Frankl, que passou anos intermináveis em campos de concentração nazis, agarrar-se a essa crença com tanto fervor no meio da deformidade moral do Holocausto?

Na “Busca do Homem por Significado” ([1]), o testamento autobiográfico de Frankl sobre o seu tempo em Auschwitz, ele oferece a seguinte explicação: “Aqueles que sabem o quão próxima é a conexão entre o estado de espírito de um homem, a coragem e a esperança, ou a falta deles, entenderá que a súbita perda da esperança e da coragem pode ter um efeito mortal”.

Para ilustrar este ponto, Frankl detalha a sua teoria sobre a alta taxa de mortalidade em Auschwitz durante o Natal de 1944 e o Ano Novo de 1945: “Os prisioneiros que morreram nessa altura, não sobreviveram porque esperavam estar em casa antes do Natal. Quando perceberam que isso não iria acontecer, perderam completamente a esperança na vida para além do campo de concentração”.

 

É tema de canções inspiradoras que nos dizem que “vai ficar tudo bem”.

Que Viktor Frankl nos inspire a acreditar firmemente nisso.

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

 

(A música é da autoria de Cristóvam e o vídeo é de Pedro Varela,

dois amigos portugueses que, à distância – um nos Açores, outro e

desta quarentena, partilhado através do Instagram.

Chama-se Andrà Tutto Bene em italiano, ou seja, “Vai Ficar Tudo Bem”).

 

Todo o mundo tem medo do que sopra no vento

Os planos que todos nós tínhamos

Todos foram pelo ralo

As nossas vidas foram adiadas

Mas eu sei que no final ficaremos bem

Estamos juntos como um só

As pessoas estão alinhadas nos supermercados

O silêncio está gritando o medo nos seus corações

Não desista da sua fé, não,

Não deixe sua luz desaparecer

Juntos, vamos atravessar a escuridão destes dias

Dois ou três meses

Eles estão dizendo na TV

Estejam seguros nos vossos abrigos e em breve estaremos livres

Um dia nos lembraremos dos tempos mais difíceis

Quando a distância significava amor e nos mantinha vivos

Andrà tutto bene

Vai ficar tudo bem

Tudo ficará bem

Andrà tutto bene

Tout ira bien

Tudo ficará bem

Para os médicos e enfermeiros

E todos aqueles que lutam

Os heróis que nos salvam

Arriscando suas vidas

Vamos dar a eles nosso amor, sim,

Vamos gritar para o céu

Irmãos e irmãs

Estamos aqui ao vosso lado

Cuidem dos que nos são queridos

Sejam fortes e corajosos

A vossa bondade é algo que não pode ser paga

E quando isto acabar, as memórias brilharão

Daqueles que faleceram e daqueles que arriscaram

a sua vida por todos nós

Mais alguns meses

Disse o apresentador

Divididos lutamos, mas unidos permanecemos

Um dia nos lembraremos os tempos mais difíceis

Quando a distância significava amor e nos mantinha vivos

Andrà tutto bene

Vai ficar tudo bem

Tudo ficará bem

Andrà tutto bene

Tout ira bien

Tudo ficará bem

Andrà tutto bene

Alles wird gut

Tudo ficará bem

Andrà tutto bene

Todo irá bien

Tudo ficará bem

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[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Viktor_Frankl#Panorama_de_sua_obra

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…DEAD MAN WALKING… Quando o desespero mata a Esperança.

NOTICIA

Imagino-o em casa, depois de ter ido visitar a sua companheira de sempre aos cuidados intensivos.

Imagino-o só, a tentar dar algum sentido à angústia que sentiu quando a viu entubada e com suporte ventilatório.

“Porque é que ela tem que sofrer tanto?” – ter-se-á perguntado.

De vez em quando os alarmes das máquinas disparam e depois calam-se novamente, mas não está lá ninguém para as ouvir senão ele.

De início corria a chamar as enfermeiras, mas estas iam-lhe dizendo que era normal, que as máquinas eram hipersensíveis e disparavam por tudo e por nada.

“Melhor as máquinas com a sua hipersensibilidade… Sempre lhe fazem alguma companhia…” – pensou ele – e deixou de incomodar as enfermeiras. Passou até a gostar que as máquinas apitassem, mas condoía-o o facto de se ir embora e então a esposa ficar completamente só, alheada até da sensibilidade das máquinas.

E essa solidão era-lhe extensível a ele.

Sentado no sofá da sala, era como se um buraco negro se abrisse no chão à sua frente:

        “- Que farei quando ela partir…?  E se calhar já partiu mesmo…”

Por vezes tentava recordar-se da face da sua amada e não conseguia e isso deixava-o ainda mais desesperado: “-Se ela se for eu nem me vou conseguir recordar da face dela!”

Estava confuso, baralhado, ele sabia que “todos teríamos que morrer um dia”, mas nunca sonhara que fosse tão difícil.

Olhava para a sua frente e não conseguia vislumbrar um futuro sem ela. Era como se verdadeiramente lhe amputassem a alma. Iria transformar-se numa alma errante e fugidia – um “dead man walking” – à espera da sua hora para se juntar a ela definitivamente.

Toda a esperança lhe escapava entre os dedos e o buraco negro aumentava e engolia-o numa angústia insuportável.

Não conseguia antever nada de bom senão o inferno na Terra.

Foi ao seu quarto e abriu a única gaveta do armário que estava sempre fechada.

Tirou a seu revólver 38 e foi direito ao hospital, repetindo para si mesmo:

“- Não vou deixar a minha mulher morrer sozinha…”

Casos como este são bem mais frequentes que o noticiado.

Decidi escrever acerca desta notícia sobretudo para exemplificar um fenómeno frequente na Depressão e que não acontece em nenhuma outra doença orgânica: A Depressão tem esta particularidade de “atacar” o ser humano na última coisa a morrer – A Esperança.

Como diz o meu colega António Sampaio, mais nenhuma doença faz isso, nem mesmo o cancro.

É como se um vírus infectasse a alma e lhe retirasse esta arma que nos dá resiliência e alguma imunidade contra as adversidades, porque sem esperança baixamos os braços e desistimos.

É preciso estarmos atentos porque muitas vezes as depressões são silenciosas e a desesperança e as ideias suicidas dos nossos mais queridos podem estar a desfilar à frente deles sem que tenhamos a mínima noção disso.

O que fazer?

Perguntar.

Perguntar sem medo, sem qualquer receio de ser mal interpretado.

“- O que se passa? Anda a pensar em quê?”

E explicitamente tentar saber: “Tem tido pensamentos de fazer mal a si próprio? Não tenha medo de me dizer. Eu preciso de saber porque me preocupo consigo.”

Temos que lidar com a Depressão com a mesma falta de piedade com que ela mata, mas com o dobro da dose em carinho para quem está a sofrer com ela.

 

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

Analfabetos dos “BONS”

Analfabetos dos BONS

Para escrever é preciso saber as letras do alfabeto e conjugá-las em grafemas, sílabas e depois palavras. Para conseguir escrever o BOM na vida é preciso atenção, ao olhar de forma completa para o que acontece. Só assim conseguiremos identificar o que é bom, agarrá-lo e registá-lo na nossa história.

Quando as pessoas procuram psicoterapia já se encontram, há muito, num ciclo de coisas que não são boas e que parecem não ter fim. Um profissional ajuda a processar de forma completa ciclos de dor na vida da pessoa, e, depois disto, surge inevitavelmente o BOM.

Quando habituamos a nossa mente a olhar demasiado para o desagradável (mau) é desenvolvido uma espécie de carril que conduz quase tudo para lá. Uma espécie de adição que se torna cegueira e, se a luz não entra, o caminho não se encontra. Precisamos então de ajuda para olhar mais e melhor, porque a solidão e a vergonha não são facilitadores desta tarefa e raramente permitem a alfabetização do bom.

Construir este caminho através da abertura para olhar mais além e com palavras que nos ajudem a dar significado ao que vivemos e vemos de bom, pode ser uma forma eficaz de combater a escuridão do mau (e, se quiser, de caminhar para o bem-estar e felicidade).

Bom e mau coexistem na vida e isto é reconfortante na aridez de uma travessia difícil ou nas simples frustrações do quotidiano. Mas é frequente termos, primeiro, dificuldade em encontrar as palavras agradáveis para expressar as coisas boas e depois, termos dificuldade em integrá-las na relação connosco próprios e com os outros. Faça o seguinte exercício: tente dar 3 adjectivos a algo de agradável que lhe aconteceu e 3 a algo de desagradável (e não vale “bom” nem “mau”) e depois tente sentir o impacto dessas palavras em si. Possivelmente sentirá mais dificuldade em encontrar as palavras e encaixá-las no bom do que no mau; encontrar, por falta de treino, e encaixar, por sentir algum receio em associá-las a si ou à experiência. Temos medo do bom porque não o queremos perder. Mas o mais triste é que perdemos oportunidades de nos sentirmos realmente bonitos, bons, importantes, livres, cheios, queridos (ou outra coisa qualquer) quando nem sequer as aceitámos no instante presente.

Também o balanço entre o passado, o presente e a perspectiva de futuro é muito importante. Mesmo quando não consegue encontrar nada de bom na sua vida que o(a) faça perspectivar-se bem no futuro, existem rasgos de luz na sua história que só precisam de ser vistos e identificados como tal. E não estou a falar do entusiasmo positivista papagueado sob a forma de incentivo motivacional que nos quer fazer acreditar que o mundo está aos nossos pés; isto, para além de desvalidante da nossa história, é tão dessincronizado da realidade que roça o ridículo.

 Para se ver e dar um significado ao bom, precisamos de partir do princípio que existem mais do que as sensações de mau que nos limitam num dado momento presente, que este não é o fim da história. Atenção e foco em toda a linha da vida! E se tivermos dificuldade em vê-la, pode ajudar olharmos para o alto; é que quando olhamos o céu damo-nos conta do quanto somos pequenos e que existe uma imensidão do universo que temos para conhecer. Depois baixamos o olhar e vislumbramos a nossa vida futura como um universo a viver e em que com certeza vai existir o Bom. Alguns chamam a isto: Esperança! Esta companhia que se empoleira na Alma e canta uma melodia sem palavras, como escreveu Emily Dickinson. É como um pássaro que não podemos aprisionar no nosso mundo interior porque corremos o risco dele achar que não é um bom lugar para se viver.

Não somos nem patetas alegres, nem tristes miseráveis. A nossa vida não é cor-de-rosa nem preta. Somos um todo. Somos o que somos com tudo o que nos assiste; o bom e o menos bom! E é assim que se faz a vida; a ganhar, a perder, a chorar, a rir, a celebrar e a deixar ir. Esta é que é uma vida realizada e não idealizada. Alfabetize os seus carris e verá a sua vida escrita de forma mais completa e livre!

Rita dos Santos Duarte – Psicóloga e Psicoterapeuta

Setembro e a Primavera

Setembro e a primavera

«Outono é outra primavera, cada folha uma flor.»
Albert Camus.

Chega Setembro e, muitas vezes com ele, surge uma sombra, um negrume…
Esta sensação, na maioria dos casos, felizmente, corresponde apenas à elipse aparente do sol, responsável pelas estações do ano, ou seja, neste caso, setembro trás consigo o equinócio que anuncia o final do verão e o início do outono, e trás também outras vibrações e humores.

Se na primavera tudo renasce, a alegria parece despontar juntamente com as folhas, e, até um sorriso de esperança pode surgir quando tudo anteriormente parecia estar mal; no outono, a queda da folha vem acompanhada duma sensação de recolhimento, de despedida dum verão que já lá vai, e, quantas vezes, duma sensação de perda ou de aprisionamento no dia-a-dia.

Se, para algumas pessoas, ou nalgumas fases da vida, regressar à rotina significa “descansar das férias”, pôr em prática ideias que foram germinando e crescendo ao longo da primavera e verão, um período de baterias carregadas que espalharão a sua energia pelos próximos meses; para outras pessoas, ou, noutras alturas, o regresso não entusiasma. E não é apenas pela saudade das férias, ou dos dias grandes, ou pelo retomar dos horários e responsabilidades que acompanham Setembro, mas sim, por uma quase certeza de que, afinal, nunca nos chegámos a libertar dum peso que nos encurva a alma e vive connosco.

Receio que, quando estamos perante este último quadro, seja sinal de que não fizemos as “limpezas de primavera”, ou seja, reencontrámos uma sensação que há muito nos acompanha, mas da qual nos tínhamos conseguido afastar durante a primavera e verão. Como se a primavera tivesse de facto trazido esperança, e que, mais uma vez, tivéssemos acreditado que tudo iria mudar sem necessitarmos de arrumar, limpar, fazer mudanças… É que a esperança pode ser tão amiga quanto adversária: amiga quando já nada podemos fazer, quando tudo saiu do nosso controlo e só ela nos resta; mas adversária, quando nos trava e impede de agir porque nos agarramos a ela, não conseguindo ver que ela está em nós, no que fizermos de, e por nós.

Agora, ao olharmos os dias mais curtos e a chuva a não conseguir soltar o cheiro a terra e relva cortada, mas apenas mostrar o sujo acumulado, apercebemo-nos de que nada mudou, estamos no mesmo sítio outra vez, sem sol, sem verde, sem azul, e, quantas vezes, também sem esperança. Apenas “nós e a nossa condição”.

Se Setembro se apoderou de si, não apenas com o seu vento fresco, cores de mel, uvas e vinho, sabores caseiros e reconfortantes, nem tão-somente com alguma nostalgia ou negrume, mas sim com uma densidade espessa e pegajosa que lhe tira o ar, não espere pela próxima “limpeza de primavera” para fazer arrumações e alterações.

Aproveite esta época de regresso para se revisitar a si própria/o, desarrumar o que parecia arrumado e não está, reciclar o que parecia perdido, deitar fora o que já não interessa, e habitar o vazio que encontrar. Assim, quando chegar a próxima primavera, poderá começar a redecorar o seu interior e renascer de facto. É necessário limpar o terreno e tratar da terra para que algo possa florir. Este trabalho requer ajuda profissional.

Não se convença de que “é sempre assim”, ou “não há nada a fazer”, de que “só os fracos procuram ajuda” ou de que “o tempo tudo cura”. Falar com um psicoterapeuta pode fazer toda a diferença; haverá situações em que poderá necessitar de medicação, haverá outras em que tal não será necessário, mas essa não deverá ser uma decisão sua, ou, apenas sua. E como é bom poder e conseguir partilhar fardos…

Afinal, Setembro é um mês de recomeços, em que também algo poderá nascer…

Iniciei este texto com uma frase de Albert Camus, deixo-vos com alguns versos do poema “A mão no arado” em “O problema da habitação” de Ruy Belo

«Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
(…)
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão …»

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

Receber presentes sem embrulho nem laço!

presente

Na quadra em que estamos é bom relembrar como podemos dar e receber aquilo que não tem preço mas que é infinitamente importante para nós: o valor próprio.

Sabemos que o valor dos presentes que nos oferecem passa essencialmente pela intenção de quem o dá. Porque pensou em nós, nos teve em consideração, nos conhece e nos quer agradar. Mas também sabemos que os melhores presentes que recebemos são aqueles que nos surpreendem e encantam ao mesmo tempo. São estes que nos tocam cá dentro porque recebemos algo adicional ao próprio presente, talvez um reflexo do nosso valor.

Precisamos RECEBER através de acções ou de actividades que nos façam sentir mais completos, mais plenos, mais seguros, com mais valor. Em que sentimos que existe algo de nós que com aquele gesto foi tornado Satisfatoriamente presente. E elas podem ser divididas em solitárias ou partilhadas mas ambas têm a particularidade de nos acrescerem algum bem-estar, prazer, satisfação.

As primeiras acontecem, por exemplo, quando ouvimos uma música ou lemos livro que gostamos, quando desenvolvemos uma paixão por um hobbie, quando contemplamos algo, quando não fazemos absolutamente nada ou quando arranjamos tempo para estarmos sozinhos. Normalmente estas coisas não são reconhecidas como tendo a capacidade de nos fazer receber e muito menos estamos habituados a notar o quanto é bom.

As segundas acontecem, por exemplo, quando passeamos ou estamos com a nossa família, quando recebemos uma sms de alguém querido depois de saber que estivemos doentes ou tristes, quando nos fazem um miminho, quando nos recebem com um abraço ou quando recebemos um sorriso acolhedor e um olhar ternurento.

Serem gentis e atenciosos connosco nem sempre é fácil de ser recebido.  Mas serem muitos expressivos naquilo que nos estão a dar como quando nos dão um “perigoso” Elogio pode erguer a muralha da dificuldade ainda mais. Os tristes hábitos educacionais de não reconhecer o bom porque pode estragar, contamina com a desconfiança, a acção de alguém que nos dá mesmo (e gratuitamente) alguma coisa. Também a cultura do “pagar para ter” é muito empobrecedora destas acções.

Numa perspectiva mais interior, a falta de merecimento é um bom candidato para explicar a resistência em aceitar atenção e reconhecimento de algo que nunca antes tenha sido notado por ninguém, nem mesmo pelo próprio, como tendo valor. Afinal de contas “não merecer” tem uma grande fundação na sofrida falta de visibilidade, valor ou de respeito ao longo da caminhada da vida. Como receber não está associado a uma troca de acções, advém simplesmente do reconhecimento daquilo que somos enquanto seres humanos no mais básico da nossa Existência (i.e. generosos, frágeis, capazes, bonitos, imperfeitos…) acolher uma entrega unidireccional que nos enche de sentimentos que não sabemos muitas vezes o que são, é muito assustador… por serem tão bons e preenchedores e, talvez, por não se ter memória afectiva e corporal do que é sentir-se assim. Falo obviamente de parentes do Amor (alegria, prazer, orgulho, pertença, esperança) que parecem transbordar o corpo e o coração e que fazem soar um sinal de alarme, do perigo de se ser bom talvez J Por isso rejeita-se este estado com o “ser bom demais para mim” entrando-se na ratoeira de não nos sentirmos dignos de receber um simples mas tão belo presente.

A dignidade com que recebemos presentes está intimamente ligada à capacidade de o acolher, isto é, ao sentimento de gratidão pelo bom, bonito, livre, vitalizante, vibrante ou brilhante ser humano, que o outro nos faz sentir SER com o presente que nos dá.

Cada presente destes vale uma vida sem a camuflagem do embrulho ou as amarras do laço!

Rita dos Santos Duarte – Psicoterapeuta