As “Vozes” que dialogam: Psicoterapia, Rádio, Criatividade e o além mais…

O chão que (re)pisamos…”

Um processo psicoterapêutico começa no instante preciso do início de uma sessão… no primeiro olhar, no primeiro momento em que o sofrimento do outro toca o psicólogo/psicoterapeuta. Assim se inicia a “viagem” de descoberta, em que o libreto se escreve a dois, esboçando os contornos de uma história contorcionista…

Inevitavelmente, muitos são os momentos em que, para o psicólogo/psicoterapeuta, fazer o que já se sabe, por si só, não chega… Sobretudo quando se torna evidente que não está a resultar. Portanto, com alguma probabilidade, continuar a fazer o mesmo que já se percebeu que não funciona, mantendo premissas profissionais estanques e pouco flexíveis pode conduzir a um processo de frustração e de impasse terapêutico. O “chão que pisamos” é caminhado em círculos e torna-se imperativo ao psicólogo/psicoterapeuta pensar em formas de sair deste movimento e avançar com o processo… No fundo, parafraseando António Branco Vasco, torna-se fundamental encontrar formas de ser responsivo e ir ao encontro das necessidades psicológicas e características do paciente.

Espera-se, por isso, que a frustração e o impasse sentidos pelo psicólogo/psicoterapeuta possam ter um papel central no sentido de o impelir a fazer uma auto-reflexão, que não é mais do que um desafio a si próprio, aos seus limites, medos e inseguranças… E ter a ousadia, a coragem e a audácia para trilhar novos “caminhos”. Assim, o processo psicoterapêutico é algo em construção… que coloca ao psicólogo/psicoterapeuta o imperativo de procurar, inovar, pesquisar e, sobretudo, ousar criar algo diferente, onde a persistência e a tenacidade são fundamentais para se criar o tal libreto com modificações, novos registos e dinâmicas. O que implica, também, uma espécie de segurança insegura e de um arriscar calculado…

A Psicologia e a Psicoterapia parecem “beber” deste mesmo princípio de criatividade, onde prima uma necessidade intrínseca de reinvenção, de adaptação e de improviso… um processo lento construído pelas “mãos” de ambos os “artistas”: psicólogo/psicoterapeuta e paciente. “Mãos” que limam arestas, que aprimoram detalhes, que colam partes, separam outras, e que reconstroem peças à medida das diferentes perspectivas de luminosidade, que os raios de luz permitem vislumbrar ao incidir sobre elas.

E depois, é necessária a serenidade, a serenidade observante mas internamente produtiva e validante do psicoterapeuta, que lhe permite transmitir um significado ao outro e “emocionalizar” conteúdos… de criar uma homeostase “des-homeostasizante” que se vai auto-regulando… Assim como o movimento das ondas do mar, por vezes agitadas com marés revoltas, mas que se conseguem apaziguar e transformar em momentos de acalmia, onde a cadência do som constante produz um efeito tranquilizador.

Um exemplo inspirador de “chão a pisar”? A Rádio Aurora – A Outra Voz*

Com base no que foi exposto anteriormente, e mais especificamente focando o conceito de criatividade, quase que surge uma reflexão inevitável… como é que no decorrer da sua prática clínica, frequentemente solitária, os técnicos conseguem ter estes vislumbres do diferente, que se pautam por arriscar, inovar e trazer algo de novo? Talvez não exista uma única resposta a esta questão, mas, de facto, são necessários mais clicks de mudança e de criatividade ao longo da prática profissional. E, esta é, possivelmente, uma premissa básica igualmente partilhada pelo paradigma generalizado das intervenções realizadas na área da saúde mental. Nesse sentido, vou “levar-vos” a um lugar em particular que tem por nome de Rádio Aurora – A Outra Voz, um exemplo de algo diferente realizado no contexto psiquiátrico hospitalar em Portugal. Assim, começa:

Entra-se pela porta de um hospital psiquiátrico… e sente-se o peso da sua história ao longo dos anos à medida que se caminha erraticamente por entre os edifícios, ruas internas e passeios… entrecortadas pelo verde das árvores, dos raios de sol que atravessam a folhagem, e do som dos pássaros fugazes, ou dos “pássaros de fogo” em direcção ao aeroporto, que tendem a aparecer…

Após alguns minutos a caminhar, entra-se num edifício, sobem-se escadas, contornam-se corredores e chega-se a uma varanda. Sim, finalmente alcança-se uma varanda composta por um gradeamento singelo, meia dúzia de cadeiras, uma mesa comprida, aparelhos de som e vista para o jardim… Uma daquelas varandas tipicamente simples, e que tal como a maioria das coisas simples, deixa desde logo antever um enorme poder. Neste caso, o poder de unir pessoas, agregar pensamentos, partilhar/ouvir/gerar ideias. O poder de somente estar, ser… e ter uma voz.

Nesta varanda a que vos “levo”, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, é realizado um programa de rádio original e invulgar no nosso país. Criado em 2009, destaca-se por ser pioneiro no combate à discriminação e estigma face à doença mental. Tem por nome Rádio Aurora – A Outra Voz. Os responsáveis pela gravação do programa são uma equipa dinâmica constituída por utentes do próprio Centro Hospitalar (residentes ou externos, que aí realizam o seu acompanhamento médico) e um dos psicólogos iniciadores do mesmo (Nuno Faleiro da Silva). Neste Programa são entrevistados e ouvidos variados convidados, planeiam-se antecipadamente as questões a fazer… e, na hora de “subir o pano” faz-se silêncio porque se vai iniciar o “espectáculo”…

E, no seio de uma intervenção deste tipo que permite dar “voz” às necessidades e vontades dos próprios utentes, foi elaborado um conjunto belo de palavras sob a forma de uma “Carta aos Psicólogos”**. Não só a beleza das palavras aqui é espelhada, mas igualmente outra beleza se destaca… o facto de esta Carta conter, em si mesma, um reforço na primeira voz do que já vem sendo indicado na literatura e no Código de Ética e Deontologia dos Psicólogos sobre:

  1. Necessidades em termos de políticas na área da saúde mental e questões (contempladas no Código de Ética e Deontologia dos Psicólogos):

  • “… estreita relação entre psicólogos, psiquiatras e toda a equipa de técnicos que acompanham os pacientes”;

  • “…todos os utentes deviam ter acesso a consultas de psicologia gratuitas ou a preços acessíveis”;

  • “… devem-nos tratar com todo o respeito e dignidade, e ao que dizemos dar credibilidade”.

  1. Características relevantes dos psicólogos/psicoterapeutas (escuta activa, empatia, validação):

  • “…Os psicólogos deviam dar feedback aos utentes”;

  • “… é muito importante saber escutar e saber também interagir com o doente… e respeitá-lo e de certa forma amá-lo”;

  • “… interessarem-se por nós e tentarem ajudar na concretização realmente efectiva da realização dos nossos sonhos”;

  • “… devem dar a segurança aos doentes”;

  • “… apoiar em todas as situações”;

  • “… aos psicólogos cabe activamente escutar, valorizar, incentivar e animar. E quando for preciso ajudar a direccionar, e sempre que achem necessário para a psiquiatria nos encaminhar”.

 

De facto, provavelmente não existe uma resposta única e ideal para “como fazer diferente” e ser criativo, tanto em intervenções individualizadas como em grupo, mas talvez o conteúdo desta “Carta aos Psicólogos” possa abrir luzes nos caminhos dos técnicos da área da saúde psicológica e mental. No sentido de perceber que os pacientes são mais resilientes do que inicialmente se pensa, sendo necessário envolver activamente a sua “voz” na procura de soluções criativas para os seus problemas reais. E, por fim, que esta Carta seja igualmente uma lembrança diária da importância do papel do psicólogo/psicoterapeuta:

Por vezes os psicólogos são mesmo a única pessoa,

Com quem podemos sobre nós abertamente conversar…

E conscientes deste facto devem estar.

Dêem o vosso melhor, trabalhem com dedicação e amor,

Dêem tudo de vós e ouçam realmente a nossa voz…”

E estas palavras ficam a bailar-me na mente, quase como se fossem uma espécie de “declaração de amor”, fazendo lembrar novamente António Branco Vasco quando diz que “amar é simplesmente deixar ser”…

* Facebook da Rádio Aurora – A Outra Voz: https://www.facebook.com/radioaurora.outravoz/

Programas em arquivo: http://www.rum.pt/shows/radio-aurora-a-outra-voz

** A versão completa da “Carta aos Psicólogos” pode ser ouvida no link: https://soundcloud.com/radio-aurora-a-outra-voz/cartapsicologos.

Teresa Santos- Psicóloga e Psicoterapeuta

Setembro e a Primavera

Setembro e a primavera

«Outono é outra primavera, cada folha uma flor.»
Albert Camus.

Chega Setembro e, muitas vezes com ele, surge uma sombra, um negrume…
Esta sensação, na maioria dos casos, felizmente, corresponde apenas à elipse aparente do sol, responsável pelas estações do ano, ou seja, neste caso, setembro trás consigo o equinócio que anuncia o final do verão e o início do outono, e trás também outras vibrações e humores.

Se na primavera tudo renasce, a alegria parece despontar juntamente com as folhas, e, até um sorriso de esperança pode surgir quando tudo anteriormente parecia estar mal; no outono, a queda da folha vem acompanhada duma sensação de recolhimento, de despedida dum verão que já lá vai, e, quantas vezes, duma sensação de perda ou de aprisionamento no dia-a-dia.

Se, para algumas pessoas, ou nalgumas fases da vida, regressar à rotina significa “descansar das férias”, pôr em prática ideias que foram germinando e crescendo ao longo da primavera e verão, um período de baterias carregadas que espalharão a sua energia pelos próximos meses; para outras pessoas, ou, noutras alturas, o regresso não entusiasma. E não é apenas pela saudade das férias, ou dos dias grandes, ou pelo retomar dos horários e responsabilidades que acompanham Setembro, mas sim, por uma quase certeza de que, afinal, nunca nos chegámos a libertar dum peso que nos encurva a alma e vive connosco.

Receio que, quando estamos perante este último quadro, seja sinal de que não fizemos as “limpezas de primavera”, ou seja, reencontrámos uma sensação que há muito nos acompanha, mas da qual nos tínhamos conseguido afastar durante a primavera e verão. Como se a primavera tivesse de facto trazido esperança, e que, mais uma vez, tivéssemos acreditado que tudo iria mudar sem necessitarmos de arrumar, limpar, fazer mudanças… É que a esperança pode ser tão amiga quanto adversária: amiga quando já nada podemos fazer, quando tudo saiu do nosso controlo e só ela nos resta; mas adversária, quando nos trava e impede de agir porque nos agarramos a ela, não conseguindo ver que ela está em nós, no que fizermos de, e por nós.

Agora, ao olharmos os dias mais curtos e a chuva a não conseguir soltar o cheiro a terra e relva cortada, mas apenas mostrar o sujo acumulado, apercebemo-nos de que nada mudou, estamos no mesmo sítio outra vez, sem sol, sem verde, sem azul, e, quantas vezes, também sem esperança. Apenas “nós e a nossa condição”.

Se Setembro se apoderou de si, não apenas com o seu vento fresco, cores de mel, uvas e vinho, sabores caseiros e reconfortantes, nem tão-somente com alguma nostalgia ou negrume, mas sim com uma densidade espessa e pegajosa que lhe tira o ar, não espere pela próxima “limpeza de primavera” para fazer arrumações e alterações.

Aproveite esta época de regresso para se revisitar a si própria/o, desarrumar o que parecia arrumado e não está, reciclar o que parecia perdido, deitar fora o que já não interessa, e habitar o vazio que encontrar. Assim, quando chegar a próxima primavera, poderá começar a redecorar o seu interior e renascer de facto. É necessário limpar o terreno e tratar da terra para que algo possa florir. Este trabalho requer ajuda profissional.

Não se convença de que “é sempre assim”, ou “não há nada a fazer”, de que “só os fracos procuram ajuda” ou de que “o tempo tudo cura”. Falar com um psicoterapeuta pode fazer toda a diferença; haverá situações em que poderá necessitar de medicação, haverá outras em que tal não será necessário, mas essa não deverá ser uma decisão sua, ou, apenas sua. E como é bom poder e conseguir partilhar fardos…

Afinal, Setembro é um mês de recomeços, em que também algo poderá nascer…

Iniciei este texto com uma frase de Albert Camus, deixo-vos com alguns versos do poema “A mão no arado” em “O problema da habitação” de Ruy Belo

«Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
(…)
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão …»

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta