Diz-me do que és capaz

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Na esmagadora maioria das vezes, quem procura ajuda e se dispõe a entrar num processo terapêutico, apresenta algum grau de sofrimento ou desconforto.

A bem da verdade, raramente encontrei alguém em consulta que procurasse ajuda porque “tudo estava bem” (e, diga-se, que quando tal sucedeu, ao cabo de algumas sessões, percebemos, eu enquanto terapeuta, e a pessoa enquanto cliente, que nem tudo estava assim tão bem, e partir desse momento, pudemos trabalhar com uma base comum rumo a um real processo de psicoterapia).

Efectivamente, a terapia parte de um ponto desconfortável, constrangedor, limitado e limitador. É este ponto que leva a que a pessoa procure uma perspectiva diferente de tudo aquilo que já experimentou, com maior ou menor eficácia, ao longo do tempo.

A forma como a pessoa e o terapeuta olham para o sofrimento é variável, ao longo do tempo, consoante as orientações teóricas, o nível de perspectivas conceptuais e sistémicas, o grau de análise, etc.. Como cliente, eventualmente o sofrimento associado a um evento impactante na sua vida terá variado na medida em que o tempo foi passando, e foi sendo capaz de perspectivar este evento num enquadramento diferente e mais adaptado, o que terá ajudado a ser capaz de lidar melhor com a situação. Por outro lado, a terapeuta que sou hoje continua (e continuará) a aprender e, portanto, as minhas conceptualizações clínicas hoje em dia são (espero eu!) mais abrangentes e contentoras do que no passado.

Parece quase intuitivo, só que nem sempre é assim. Na pressa ou no hábito que por vezes se cai tendo em conta um modelo mais de doença vs cura, esquecemos uma abordagem mais abrangente e compreensiva. E isto sucede tanto da parte do terapeuta (muitas vezes a partir de crenças sobre o próprio papel que desempenha no processo terapêutico) como também da parte da pessoa que procura ajuda, que pretende um alívio mais focado do que propriamente uma expansão da sua forma de se relacionar consigo e com os outros.

No entanto, uma das tarefas mais cruciais de qualquer processo de ajuda psicológica é a de permitir que a pessoa reganhe uma percepção de controlo e responsabilidade na sua vida. Só neste empoderamento conseguirá a pessoa abraçar e personificar todo o trabalho multidimensional que é conduzido no processo terapêutico, quer em termos emocionais, experienciais, cognitivos e comportamentais.

E esta tarefa dificilmente é conseguida se trabalharmos a partir de um modelo que se foque exclusivamente naquilo que “falta” à pessoa. Mais do que uma aprendizagem gradual, a terapia é um laboratório humano, em que o suporte providenciado nem sempre (quase nunca) passa por providenciar soluções. No processo de descoberta conjunta, parte-se do que a pessoa traz, dos seus recursos, reais e/ ou percebidos, e expande-se a partir daí, numa viagem corajosa.

Assim sendo, costumo desafiar quem me procura não apenas a elaborar sobre o que a preocupa, entristece, aborrece, enfim, mas também a discorrer sobre o que ainda é bom, sobre aquilo de que é capaz de fazer e que lhe permite fruir a vida. Não, esclareço que não sou fã de um foco exagerado no positivo, de forma tal que se distorça o sofrimento. E, ao mesmo tempo, venho descobrindo que um qualquer processo que se circunscreva ao que “está mal”, pecará pela ausência de uma perspectiva sistémica e organísmica sobre a pessoa.

Sabemos que abordar o que nos causa sofrimento é um passo fulcral na sua contenção, definição e enquadramento. Aliás, o foco no que dói é, efectivamente, uma estratégia muito utilizada no controlo e gestão psicológica da dor. Nesses casos, a pessoa é encorajada a não evitar o sofrimento (ao invés do que tipicamente acontece) e dar uma nova perspectiva ao sofrimento. Como é a dor, de que cor é, onde está localizada? E a partir daqui, a partir da delimitação consciente e focada, a pessoa é capaz de enquadrar e focar naquilo que não acarreta sofrimento e, assim, apreciar sensações prazerosas que antes ficavam reféns da dor, uma vez que esta era percebida de forma hiper-difusa.

E assim, focar no que está bem, saudável e prazeroso na vida da pessoa confere um grau de poder e de apreciação que lhe permitira aferir e mobilizar os seus recursos pessoais, internos e externos, bem como regular a sua própria percepção de eficácia e auto-conceito. Por outras palavras, nem tudo é bom e nem tudo é mau, e a grande diferença está também na forma como a pessoa perspectiva e enquadra a sua realidade psicológica.

Recordo com imenso carinho uma pessoa que acompanhei durante algum tempo e que, quando desafiado a reflectir sobre o que era capaz, me respondeu, como se fosse a resposta menos valiosa, “sei montar um computador de raíz”. Ora pois, como imaginam, este foi um dos primeiros momentos em muito tempo que esta pessoa foi convidada a mostrar um lado positive de si. E foi a partir desta percepção de competência que pudemos desbloquear um trabalho mais abrangente, satisfatório e transformador.

Desta forma, aceito que o sofrimento seja, efectivamente, o grande responsável pelo início dos processos de psicoterapia, mas recuso que o foco de um bom e saudável processo se esgote na negatividade e na superação mecânica de um estado anterior.

Antes, prefiro optar por uma abordagem em que se traz para o processo desafiador da psicoterapia tanto o bom, como o mau, como o difícil e o fácil, o doloroso e o prazeroso, e todas as dicotomias que estamos habituados a usar numa catalogação heurística mas que são redutoras quando se trata de traduzir a complexidade da mudança.

E uma das formas que vim desenvolvendo tem sido, precisamente essa, de convidar a pessoa a reflectir sobre as suas capacidades.

E por aí, de que são capazes?

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga e Psicoterapêuta

“Amor nos tempos de cólera”, a MARTA e um exercício

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Gabriel Garcia-Márquez escreveu uma das que é considerada unanimemente, uma das obras-primas da literatura. Remete-nos para um mundo intenso de emoções, de sensações, de um tanto que (todos) temos cá dentro, nos limites da nossa pele.

Ainda assim, para hoje, atrevo-me apenas a divagar sobre o título. Há toda uma riqueza nestas palavras, o amor nos tempos de cólera. Permitam-me, por conforto e conveniência para o tema, deixar de lado a cólera enquanto enfermidade, para nos centrarmos na cólera enquanto emoção intensa de raiva e zanga.

Já sabemos que, para bem da nossa saúde mental, as emoções são para ser vividas e experienciadas de forma segura e saudável. Vários autores tentam chegar a um consenso relativamente as emoções que podemos designar como transversais. Façamos a ressalva, estamos a falar de emoções e não da sua expressão facial, e estamos propositadamente a evitar termos como “universais” e “primárias”, de pendor teórico bastante marcado.

Consideremos então, novamente por conveniência, o seguinte rol de emoções transversais, ao qual (a quem) carinhosamente chamaremos MARTA.

  • Medo
  • Alegria
  • Raiva (há quem prefira “zanga”, mas por conforto para a MARTA, iremos manter raiva)
  • Tristeza
  • Atracção (e o seu oposto, a repulsa)

Ora bem, nem todos temos MARTAs na nossa vida, pelo menos da forma mais plena. Sugiro um rápido (mas nem por isso mais fácil) exercício. Ordene as emoções que aqui abordamos consoante a frequência com as experiencia (note que experienciar e expressar sao aspectos diferentes, por exemplo, pode estar zangado com um familiar mas não o expressar). Ja está? Repare que nem sempre é nítido acedermos ao nosso estado emocional (salvo em momentos de assinalável intensidade). Este é o primeiro passo do exercício.

O segundo desafio consiste em tentar perceber, ao longo da sua vida, a sua configuração emocional da MARTA se alterou, ou seja, se as emoções que experiencia mais frequentemente têm sido as mesmas (ou qual foi a direcção da mudança). Para os mais ávidos do registo mais pragmático, uma linha horizontal separada a intervalos regulares (5 ou 10 anos) pode ser uma boa ideia. Este é o segundo passo do exercício.

Na primeira parte do exercício, terá ficado com uma sequência de emoções, seja MARTA ou qualquer outra combinação possível, em que a primeira será a emoção que reconhece como sendo aquela que mais facilmente vivência (independentemente de a expressar, ou não), e dessa até chegar à última, que será a emoção que reconhece como mais dificilmente experienciada.

É importante estar atento. A tarefa é a de se permitir tomar maior consciência das emoções que ficaram em 4o e 5o lugar. Regra geral, são emoções que não nos permitimos sentir, ou através dos nossos diálogos internos, das expectativas e das regras vigentes na sociedade (todos “sabemos” que um homem não chora, uma menina não se zanga, etc..), na família, na escola, ou num determinado grupo ao qual queremos pertencer. Portanto, é útil apercebermo-nos que nos foi permitido expressar? E, por outro lado, o que nos foi proibido expressar?

No outro extremo, as emoções que conquistaram o 1o e 2o lugar são, muito possivelmente, aquelas que estão a ser experienciadas em regime de sobre-compensação. Ou seja, a sua vivência permite, eventualmente, mascara, iludir ou até não sentir as emoções que ficaram no fim da tabela. Não se quer com isto dizer que não estejamos de facto a experiênciar essa emoção, apenas estamos a focar na frequência com que essa vivência pode estar a substituir a expressão da emoção original. Esta emoção original seria aquela que, efectivamente, a pessoa exprimiria de forma plena e que lhe permitiria satisfazer a necessidade do momento que conduziu ao seu aparecimento.

Por exemplo, se colocou a raiva no último lugar da sua matriz emocional, e a tristeza em primeiro ou segundo lugar, poderíamos imaginar que em determinadas situações em que se poderia ter zangado (a raiva é uma emoção bastante activa em termos fisiológicos), se terá entristecido (sendo a tristeza uma emoção menos activa, e potencialmente mais lúcida e nítida).

Em complemento, o momento de retrospectiva do exercício apura-nos a capacidade de reflexão sobre os nossos momentos emocionais ao longo da vida (os mais marcantes, mas também os que correspondem a alturas menos intensas).

Esta movimentação pode ser relevante para nos darmos conta de eventuais padrões de expressão emocional num determinado sistema (família, escola, grupos de pares, etc.). Identificar estes padrões idealizados permite-nos também aumentar a consciência dos padrões proibidos, ao longo do tempo. Se tiver havido mudança na configuração da sua matriz emocional, poderá depreender-se que, ao longo do tempo, a pessoa foi capaz de flexibilizar a sua vivência emocional. Por outro lado, se a sua MARTA se manteve mais ou menos constante, tenha em atenção que uma configuração mais rígida inflexível poderá estar mais associada a uma menor capacidade de regulação de experiências emocionais e, eventualmente, a uma menor satisfação.

Voltemos a Gabriel, confirmando que o amor nos tempos de cólera também pode ser a tristeza nos momentos de medo ou a alegria nos momentos de tristeza. Apresentemos estas possibilidades às nossas vivências, permitamo-nos navegar entre o pode ser intenso e marcante, mas também plácido e sereno.

No fundo, pretendemos caminhar no sentido de aceder de forma segura ao mais autêntico das nossas emoções e, assim, saber de que precisamos para sermos mais plenos …

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

Luzes, câmara, luzes e … mudança!

luzes, camara

Quantas vezes já deu por si a pensar que a sua vida dava um filme?
Não necessariamente um filme de humor nem uma comédia, e também não teria de ser uma tragédia, mas um filme claramente surreal, cheio de peripécias que, por vezes, dispensaria de bom grado.
Se foram muitas estas vezes em que tudo lhe parece acontecer, talvez seja altura de tentar perceber quem anda a escrever os papéis que lhe tem cabido interpretar. E, aproveitando o ensejo, tentar perceber o que o leva a continuar a desempenhar esses papéis em vez de experimentar novos desafios na arte da representação (ou, na verdade, de viver a vida!).

Muitas vezes encontramo-nos presos a um determinado estilo de papéis que, num determinado momento da nossa história, nos foi pedido (ou até exigido) que representássemos. Fomos aquele herói improvável que avançou de forma destemida apesar das contrariedades. Ou fomos a personagem ingénua que confiou cegamente na capacidade de protecção dos outros e no fim se encontrou a braços com uma reviravolta (não tão) surpreendente. Também nos pode acontecer sermos apontados como o déspota tirano, ou até o vilão que, bem lá no fundo, até tem sentimentos, mas a quem ninguém dá a devida atenção e a oportunidade de se redimir.
Até aqui, tudo bem. O problema, como acontece tantas vezes nas versões de Hollywood, é que um determinado actor ou actriz, quando desempenha um papel demasiado bem, acaba quase sempre por ser procurado novamente para continuar a representar esse tipo de papéis. Em quase exclusividade. Lá está, exactamente como em Hollywood, sem grandes hipóteses de poder surpreender o público com novas competências e personagens.

Somos, desde pequenos, estimulados e incentivados a desempenhar um determinado tipo de papel ao longo das variadas relações que estabelecemos. Assim, vamos exercitando as nossas capacidades e competências sobretudo num espectro relativamente estruturado de guiões. Acabamos por nos tornar especialistas num tipo de papel, que é como quem diz, num emaranhado de padrões de relacionamento com os outros e connosco que acaba por ser repetido, mesmo que não entendamos o porquê.
Num desenvolvimento saudável e potenciador, a vida acaba por nos expor a determinadas situações que nos desafiam a fazer diferente do que já tínhamos feito até então. Compete-nos a arte de aprendermos a flexibilizar e de sermos melhores protagonistas em cada guião diferenciado com que temos de lidar. Por vezes temos de ser vilões, outras vezes a figura em apuros, outras vezes o super-herói. E algumas vezes, temos de perceber que o filme em que nos encontramos não é sequer para ser protagonizado por nós e que o nosso papel será apenas uma tímida interpretação secundária. Ou mesmo uma ligeira e fugaz figuração.

Mas quando não conseguimos quebrar este padrão, expomo-nos a situações que nos podem trazer sofrimento, ao tentarmos repetir sempre o mesmo papel. Por vezes, representar o mesmo papel quando toda a narrativa mudou, torna-se desadequado e quem mais sofre é quem insiste em desempenhar um papel que agora é desnecessário e até possivelmente inconveniente. E é neste momento que a tomada de consciência deste “guião de vida” do qual nos fizemos reféns se torna importante. É importante reconhecer este padrão, este “papel-tipo” em que a pessoa se coloca, para poder sequer ousar experimentar fazer e ser diferente. Na verdade, a maior parte das vezes, a pessoa está tão habituada a este papel-tipo que o veste quase como uma segunda pele e sem sequer se aperceber que é bem mais do que a personagem que tantas vezes interpreta.
Por isso, representar outros papéis é algo que envolve uma determinação e um esforço que a pessoa tipicamente não esta a espera. Parece ser tão mais fácil regressar a esta personagem de outrora, mesmo que ela traga sofrimento.
Recordando Shakespeare, o mundo é um palco e a vida é uma peça sem ensaios. Permito-me acrescentar que o processo terapêutico pode ser o mais próximo possível do ensaio geral que a vida nos possibilita.

Um passo seguinte, ousado, mais exigente, ocorre quando nos libertamos destes papéis e passamos a ter autonomia e liberdade para reescrevemos os nossos filmes e nos apoderarmos da forma como conduzimos esta vida em que participamos. Tornamo-nos argumentistas. Produtores. Realizadores. Com direito a fracassos e a sucessos. Por vezes aplausos, outras, silêncio. Algumas, aplausos merecidos, outros fingidos, alguns silêncios estranhos, outros reconfortantes.

De facto, os grandes artistas são aqueles que conseguem adaptar-se ao registo de cada obra na qual participam, quer a representar, a escrever, produzir e até a realizar.
Sejamos os melhores produtores, argumentistas e protagonistas desta nossa peça. Porque é nossa. Única. E contínua…

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

Monólogos perigosos

Monólogos Perigosos

Escrevo estas linhas numa das minhas primeiras viagens de trabalho a solo. Estou em terras de sua majestade, treinando outros colegas terapeutas. O projecto PSITALK em versão internacional!

A vontade de vir era escassa. No entanto, não tinha grande oportunidade de recusar. Assim, optei por tentar aproveitar este momento. Muitas vezes falta-nos esta capacidade de pegar numa contrariedade e desafiá-la. Então, pensei no que poderia reflectir sobre eventuais implicações terapêuticas de situações similares a esta minha reclusão semi-involuntaria. Que melhor inspiração poderia eu ter para pensar do que uma situação real?
Pus-me então a tentar perceber o que estava a toldar negativamente o meu estado emocional. O que tornava esta estadia tão desconfortável para mim, neste momento? Apercebi-me que estava receosa de que algo não corresse bem com a formação. Que havia receios por detrás desta simples vontade de não aproveitar a oportunidade.

Comecei a recordar-me de quantas vezes ouvimos na psicoterapia medos como “E se eu não sou capaz?”, “E se não me consigo orientar com X, Y, Z?”, “E se …”, “E se…”?
Note-se que estes “e se” são, regra geral, algo catastróficos e, subjacente a estas infindáveis questões, vem uma correspondente, mas quase imperceptível, vaga de afirmações negativas sobre si próprio, “Não vou ser capaz”, “Não consigo ligar com X, Y, Z”.
Passamos portanto das perguntas, das interrogações, para uma simples, velada, mas implacável, negação das nossas capacidades. Já não se trata de imaginar se seremos competentes ou não, aqui nem damos hipótese de refutação, argumentação ou contraposição.

Alem disso, somos mais duros e exigentes connosco do que habitualmente seríamos com qualquer outra pessoa, familiar, amigo ou colega.
Embora a psicologia social nos demonstre que tendemos a perspectivar o nosso mundo interior como mais rico e fenomenologicamente mais complexo do que o do outro, isso não quer de todo dizer que somos mais magnânimos connosco, muito pelo contrário.
Assim, somos capazes de nos dizer coisas que acharíamos extremamente rude e exagerado dizer a outras pessoas, ou que não gostaríamos certamente que outras pessoas nos dissessem.
Acompanho uma mulher, culta, introspectiva e cuja frase de toque é: “claro que isto me acontece, eu sou pró em falhar!”. Pedi-lhe, certa vez, que de cada vez que houvesse um “ataque destes”, tentasse fazer o exercício de mo dirigir. Assim, quando esta frase saiu, “só faço disparates”, ela teve de me dizer, “Ana, só faz disparates”. Estão a ver o resultado? Conseguem certamente imaginar que foi muito mais difícil, para esta pessoa, dizer mal da terapeuta, mesmo que a seu pedido, do que parar de se auto-sabotar.

Esta questão levanta outras questões interessantes em termos psicoterapeuticos. Qual o nível de diálogo interno em que a pessoa se encontra? Este diálogo vem de onde? de quando? e inicialmente comecou pela voz de quem? Em que momentos se torna esta voz crítica mais ou menos poderosa? E quando se torna demasiado poderosa?
Ocorre que, muitas vezes, esta voz que assumimos como nossa, este monólogo envenenado, não é nossa, foi assimilado pela repetição de padrões, quer familiares, quer de cariz socialmente mais abrangente. Recordo que embora o sentido da audição possa ser o último a perder-se quando o nosso estado de saúde está seriamente comprometido, a primeira coisa que tendemos a esquecer numa pessoa é a voz. E assim, substituímos a voz do outro pela nossa própria voz. Por vezes, com resultados positivos, mas, neste caso, nem tanto assim, já que nos tornamos mensageiros de acutilantes auto-críticas.

Convém, no entanto, perceber que há diálogos internos que podem ser positivos e que não se trata apenas de introjectos sociais, que, em última análise, podem ser vistos como socialmente estruturantes (porque securizam e validam a nossa construcção de valores). Por exemplo, eu dizer-me: “roubar é feio” ou “não se deve roubar” é claramente um introjecto de origem social. Regula a nossa interacção e tem um cariz adaptativo. Seria algo que diríamos a qualquer outra pessoa.
Já eu dizer-me “nunca sou capaz de fazer algo de jeito” é um claríssimo exemplo destes monólogos arriscados. Não há qualquer benefício imediato ou passado neste tipo de diálogo interno, apenas uma culpabilização que não induz a responsabilidade.

Por isso, parece-me útil chamar a atenção para esta dimensão, que por vezes passa mais despercebida em terapia, e que pode afectar tanto o terapeuta como o cliente.
O monólogo interno pode ser, em determinado momento, desconstruído de maneira a poder ser manejável de forma não ameaçadora para o próprio. Pode ser útil convidar a pessoa a reflectir sobre o sentido que essa afirmação, essa perspectiva de obrigação de ser melhor, lhe faz num determinado contexto.

Mas antes de tudo isso, o cliente é convidado a ganhar consciência deste monólogo. Na verdade, passamos tanto tempo em piloto automático que esta tarefa de ganhar consciência se torna, ela mesma, uma autêntica demanda quimérica. Só depois podemos ensaiar a descoberta de outras vozes, mais cuidadoras e acolhedoras, que o cliente terá dentro de si.

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga e Psicoterapeuta