“Amor nos tempos de cólera”, a MARTA e um exercício

amor em tpos cólera

Gabriel Garcia-Márquez escreveu uma das que é considerada unanimemente, uma das obras-primas da literatura. Remete-nos para um mundo intenso de emoções, de sensações, de um tanto que (todos) temos cá dentro, nos limites da nossa pele.

Ainda assim, para hoje, atrevo-me apenas a divagar sobre o título. Há toda uma riqueza nestas palavras, o amor nos tempos de cólera. Permitam-me, por conforto e conveniência para o tema, deixar de lado a cólera enquanto enfermidade, para nos centrarmos na cólera enquanto emoção intensa de raiva e zanga.

Já sabemos que, para bem da nossa saúde mental, as emoções são para ser vividas e experienciadas de forma segura e saudável. Vários autores tentam chegar a um consenso relativamente as emoções que podemos designar como transversais. Façamos a ressalva, estamos a falar de emoções e não da sua expressão facial, e estamos propositadamente a evitar termos como “universais” e “primárias”, de pendor teórico bastante marcado.

Consideremos então, novamente por conveniência, o seguinte rol de emoções transversais, ao qual (a quem) carinhosamente chamaremos MARTA.

  • Medo
  • Alegria
  • Raiva (há quem prefira “zanga”, mas por conforto para a MARTA, iremos manter raiva)
  • Tristeza
  • Atracção (e o seu oposto, a repulsa)

Ora bem, nem todos temos MARTAs na nossa vida, pelo menos da forma mais plena. Sugiro um rápido (mas nem por isso mais fácil) exercício. Ordene as emoções que aqui abordamos consoante a frequência com as experiencia (note que experienciar e expressar sao aspectos diferentes, por exemplo, pode estar zangado com um familiar mas não o expressar). Ja está? Repare que nem sempre é nítido acedermos ao nosso estado emocional (salvo em momentos de assinalável intensidade). Este é o primeiro passo do exercício.

O segundo desafio consiste em tentar perceber, ao longo da sua vida, a sua configuração emocional da MARTA se alterou, ou seja, se as emoções que experiencia mais frequentemente têm sido as mesmas (ou qual foi a direcção da mudança). Para os mais ávidos do registo mais pragmático, uma linha horizontal separada a intervalos regulares (5 ou 10 anos) pode ser uma boa ideia. Este é o segundo passo do exercício.

Na primeira parte do exercício, terá ficado com uma sequência de emoções, seja MARTA ou qualquer outra combinação possível, em que a primeira será a emoção que reconhece como sendo aquela que mais facilmente vivência (independentemente de a expressar, ou não), e dessa até chegar à última, que será a emoção que reconhece como mais dificilmente experienciada.

É importante estar atento. A tarefa é a de se permitir tomar maior consciência das emoções que ficaram em 4o e 5o lugar. Regra geral, são emoções que não nos permitimos sentir, ou através dos nossos diálogos internos, das expectativas e das regras vigentes na sociedade (todos “sabemos” que um homem não chora, uma menina não se zanga, etc..), na família, na escola, ou num determinado grupo ao qual queremos pertencer. Portanto, é útil apercebermo-nos que nos foi permitido expressar? E, por outro lado, o que nos foi proibido expressar?

No outro extremo, as emoções que conquistaram o 1o e 2o lugar são, muito possivelmente, aquelas que estão a ser experienciadas em regime de sobre-compensação. Ou seja, a sua vivência permite, eventualmente, mascara, iludir ou até não sentir as emoções que ficaram no fim da tabela. Não se quer com isto dizer que não estejamos de facto a experiênciar essa emoção, apenas estamos a focar na frequência com que essa vivência pode estar a substituir a expressão da emoção original. Esta emoção original seria aquela que, efectivamente, a pessoa exprimiria de forma plena e que lhe permitiria satisfazer a necessidade do momento que conduziu ao seu aparecimento.

Por exemplo, se colocou a raiva no último lugar da sua matriz emocional, e a tristeza em primeiro ou segundo lugar, poderíamos imaginar que em determinadas situações em que se poderia ter zangado (a raiva é uma emoção bastante activa em termos fisiológicos), se terá entristecido (sendo a tristeza uma emoção menos activa, e potencialmente mais lúcida e nítida).

Em complemento, o momento de retrospectiva do exercício apura-nos a capacidade de reflexão sobre os nossos momentos emocionais ao longo da vida (os mais marcantes, mas também os que correspondem a alturas menos intensas).

Esta movimentação pode ser relevante para nos darmos conta de eventuais padrões de expressão emocional num determinado sistema (família, escola, grupos de pares, etc.). Identificar estes padrões idealizados permite-nos também aumentar a consciência dos padrões proibidos, ao longo do tempo. Se tiver havido mudança na configuração da sua matriz emocional, poderá depreender-se que, ao longo do tempo, a pessoa foi capaz de flexibilizar a sua vivência emocional. Por outro lado, se a sua MARTA se manteve mais ou menos constante, tenha em atenção que uma configuração mais rígida inflexível poderá estar mais associada a uma menor capacidade de regulação de experiências emocionais e, eventualmente, a uma menor satisfação.

Voltemos a Gabriel, confirmando que o amor nos tempos de cólera também pode ser a tristeza nos momentos de medo ou a alegria nos momentos de tristeza. Apresentemos estas possibilidades às nossas vivências, permitamo-nos navegar entre o pode ser intenso e marcante, mas também plácido e sereno.

No fundo, pretendemos caminhar no sentido de aceder de forma segura ao mais autêntico das nossas emoções e, assim, saber de que precisamos para sermos mais plenos …

Ana Baptista de Oliveira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

MINDFULNESS – BUDISMO E PSICOTERAPIA – IV

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A descoberta do “mindfulness” pelo mundo psi – Considerações finais

Assim, o mindfulness pode ser encarado como um instrumento
à disposição de qualquer orientação psicoterapêutica.

Mas no sentido mais puro, mindfulness é um objectivo a alcançar e não um meio para atingir um fim.

No sentido último, mindfulness é tudo menos terapia, já que a terapia trata a mente com o objectivo de a adequar, enquanto instrumento, ao seu portador – adequar a mente para que este possa, com o devido treino – psicoterapia – torná-lo um instrumento valioso e adequado para que a sua vivência do mundo e de si próprio aconteça sem sofrimento desnecessário ou, havendo sofrimento, haja adquirido as competências psicológicas para o vivenciar de forma adaptativa.

No sentido budista, mindfulness é um instrumento de desidentificação com toda e qualquer vivência, interna ou externa.

Assim, a meditação budista – centrada no mindfulness – serve para a descoberta de si próprio e para a superação da identificação das vivências do Ser com o mundo externo ou interno, já que é enquanto o Ser vive convencido da realidade e substância do seu ego, identificado e iludido – é nessa ignorância de Si próprio – que reside todo o sofrimento.

Um dia um Mestre Zen foi em visita ao mosteiro de outro Mestre Zen.

Chovia muito e depois de chegar ao Mosteiro foi recebido pelo seu homónimo com esta questão:

“- Quando você chegou ao Mosteiro chovia muito?”

“-Sim, chovia bastante.”

“-Arrumou as suas sandálias e o seu guarda-chuva quando chegou?”

“-Sim, arrumei.”

“-E arrumou o guarda-chuva do lado esquerdo ou do lado direito das sandálias?”

O Mestre que havia acabado de chegar não soube responder e reza a história que ficou mais dez anos a aprender com o Mestre que o acolheu e lhe fez aquela pergunta desconcertante.

Este é um koan Zen que ouvi pela primeira vez numa aula de meditação na União Budista e a interpretação que me ocorreu é o quão pouco nós habitamos no Aqui e no Agora, o quanto passamos a maior parte do nosso tempo vigil com uma limitada consciência da nossa vivência no presente.

Frequentemente oiço dizer (e oiço-me dizer): “O tempo voa.” “Ainda ontem fiz (isto ou aquilo que aconteceu há 20 anos)”; “Parece que foi ontem (há 10 ou 20 anos) que aquilo aconteceu”.

Se é verdade que a vivência do tempo é tremendamente relativa, também é um facto que a sensação de “desperdício” é tanto mais significativa quando ganhamos consciência que vivemos a nossa vida longe do Aqui e do Agora, porque quanto mais longe do Aqui e do Agora menos intensa e habitada à a experiência humana.

Por outro lado, quando se vive com intensidade uma determinada experiência pode também acontecer esta noção de ausência de vivência temporal. Se estivermos absortos num determinado espectáculo e a viver intensamente todas as incidências do mesmo por vezes temos a percepção que o tempo “passou num ápice”.

O que aconteceria se nos dispuséssemos a aprender a viver a maior parte da nossa vida intensamente? A habitar conscientemente cada pequeno momento? A viver cada segundo com a sofreguidão de quem vai morrer amanhã?

Será que a nossa história seria a mesma?

O que seria que nos disporíamos a escrever?

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

MINDFULNESS – BUDISMO E PSICOTERAPIA – I

A descoberta do “mindfulness” pelo mundo psi – A Psique à luz

do pensamento budista

Nos últimos anos a palavra “mindfulness” tem estado a adquirir um espaço próprio no mundo psi, querendo significar “estar no Aqui e no Agora”.

Traduzido literalmente é ter a mente (cognitiva, emocional e sensorial) – mind – concentrada por completo – full – no Aqui e Agora.

Alguns terapeutas reduzem, assim, o conceito de “mindfulness” a uma tomada de consciência de si próprio: “Quando se sentir (irritado/triste/ansioso/…) sem perceber porquê, eu quero que pare, feche os olhos e concentre-se sobre as emoções que está a sentir naquele momento, nos pensamentos que lhe ocorrem e nas sensações físicas que estiver a sentir” – o mindfulness fica assim limitado a um procedimento ou técnica do paciente para aumentar o insight (cognitivo, emocional e sensorial) sobre si próprio.

No entanto, “mindfulness” é muito mais do que isso e não foi sequer descoberto ou “inventado” por um profissional psi.

Antes de ser um recurso novo usado em psicoterapia, “mindfulness” era já popular nos meios da espiritualidade como uma forma de meditação ou mesmo uma atitude revolucionária perante a mente, com um significado bem mais amplo e abrangente do que o de tomada de consciência de si próprio.

O conceito de “mindfulness” é originário do Budismo e foi transplantado e adaptado desta disciplina espiritual para a Psicoterapia.

Mas antes de analisarmos em que consiste “mindfulness” na tradição budista, convém entender a estruturação da Psique à luz do entendimento budista.

Em primeiro lugar, para o Budismo, a Mente é apenas um instrumento, um instrumento cognitivo, emocional e sensorial através do qual o Ser conhece o mundo e se conhece a si próprio mas, cima de tudo, a Mente não é o Ser.

O Ser usa a Mente na sua incursão existencial neste mundo, da mesma forma que o condutor usa o seu automóvel para fazer uma viagem.

O sofrimento do ser humano, segundo o Budismo, advém, de entre outras causas, da total identificação do Ser com o seu instrumento existencial, como se o condutor do automóvel se esquecesse da sua própria Natureza e se identificasse completamente com o seu automóvel, passando a acreditar que a sua existência se limita a conhecer o mundo e a si próprio através da sua experiência de condutor, relacionando-se com outros automóveis e confundindo os condutores destes com os seus automóveis e acreditando que a sua vida e dos restantes acabará quando os respectivos automóveis acabarem todos na sucata.

Esta total identificação irá impedi-lo de ser livre, de conhecer a sua verdadeira Natureza, de – por um breve momento que seja – poder abrir a porta do automóvel, sair deste e permitir-se pensar: “Eu sou mais do que esta sucata articulada e aparentemente perfeita, eu sou Aquele que conduz esta máquina, mas estou longe de ser este automóvel”.

Assim, segundo o Budismo, os seres humanos vivem as suas vidas identificados com as suas Mentes, acreditando que SÃO os pensamentos que têm, as emoções que vivenciam e/ou a multitude das sensações que experienciam.

A dor resulta desta identificação, da ignorância fundamental da sua verdadeira Natureza – um dia que os seres humanos consigam perceber que são donos das suas mentes e não suas vitimas – que podem dispor da sua Mente como de qualquer outro instrumento serão livres.

A meditação baseada no “mindfulness”, mais do que uma técnica de tomada de consciência de si próprio, é um instrumento precioso de auto-conhecimento, através do qual – duma forma experiencial e não apenas teórica – o praticante tenta perceber “o que o Eu não é”, desidentificando-se dos objectos (materiais, emocionais  e cognitivos) com os quais se identifica.

Pensamentos, emoções e sensações são os produtos utilizados pelo Eu para interpretar, significar e interagir com o mundo e consigo próprio – mas não são o Eu.

Estes produtos, no seu conjunto, formam o ego – a persona – mas este é apenas o veículo usado pelo Eu na sua viagem existencial.

Uma vez terminada essa viagem, o ego perece mas o Eu continua, à semelhança dum actor que abandona a personagem duma peça de teatro e é capaz de vestir diferentes personagens ao longo da sua vida profissional sem nunca se identificar com as mesmas, sem nunca perder a crítica e ficar aprisionado a nenhuma delas.

Nessa desidentificação – na descoberta daquilo que Não É – caminha o aspirante para descoberta do Ser, do Eu – o Inominável, o Omnisciente, a Fonte – que subjaz a toda a manifestação.

Quando lemos os passos de Bodhisavta até à Iluminação ou Despertar, o último dos seus passos consistiu numa longa meditação em que empreendeu uma luta titânica com Mara (simbolizando o seu ego) e este terá sido o seu passo final de desidentificação total com o ego, em que acabou por alcançar e realizar a Libertação Espiritual.

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(CONTINUA)

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta