COMO É QUE É MESMO ISTO DE PÔR LIMITES?

limites
Tenho me apercebido com vários pacientes, e mesmo com pessoas da minha vida pessoal, e por vezes eu própria, que a ideia de colocar limites é muito assustadora, traz a ameaça da perda, de magoar o outro a um nível que destrua a relação.
Ainda que os nossos limites possam sim ser incompreendidos pelo outro e por isso fazerem-no sentir-se magoado, e até possam ser prelúdios de um fim se o outro não os souber acolher e respeitar, também é verdade que são os limites, as “regras do jogo”, que nos permitem interagir de uma forma positiva e construtiva, que dá estrutura, segurança, e favorece as relações.
Ao refletir sobre esta dificuldade em colocarmos limites, tem-me surgido que parte dela poderá advir também de uma distorção ou um enviesamento que sinto que fazemos no a quem é que sentimos que os estamos a colocar.
Geralmente o outro sente que lhe estamos a colocar limites a ele, e parece-me que frequentemente compramos esta ideia, quando na realidade estamos, ou deveríamos estar, a colocar limites a nós próprios, o que podendo parecer o mesmo é na realidade bastante diferente e a própria experiência psicológica de o fazer é diferente e em mais do que um sentido.

Quando sinto que estou a colocar limites ao outro sinto que o estou a privar da liberdade dele, quando reconheço que estou a colocar limites a mim próprio percebo que estou a usar da minha liberdade para me proteger ou defender, que é bastante diferente.
Imaginemos uma discussão exaltada e infrutífera com um familiar perante a qual digo “chega, não vou mais alimentar esta discussão hoje”; se achar que estou a colocar um limite ao outro, a minha experiência é tendencialmente bem mais negativa, e a meu ver incorreta, do que se reconhecer que não o estou a impedir a ele mas sim a colocar um limite a mim, sou eu que decido alimentar ou descontinuar a discussão naquele momento.

Apesar de eu ver benefícios no perceber que é a nós, mais do que aos outros, que colocamos, ou deveríamos colocar, limites, este reconhecimento nem sempre é suficientemente motivador; colocarmo-nos limites a nós pode ser tão ou mais difícil do que supostamente os colocarmos aos outros; isto porque temos uma certa tendência para esperar que os outros cooperem e ressentimo-nos quando nos sentimos abusados, advogando que eles deveriam ser mais maduros, mais compreensivos, mais respeitadores, enfim; e esta postura de nos colocarmos limites a nós implica assumirmos que, apesar de podermos ficar magoados ou desiludidos com as atitudes do outro, é nossa responsabilidade acima de tudo tomarmos uma atitude afirmativa e auto-protetora perante os potenciais abusos dele e mantermo-nos fiéis às nossas decisões.

Os limites mais produtivos, ainda que talvez mais difíceis, precisamente pela responsabilidade que acarretam, passam por:

  • Mantermos a consequência que estipulámos para o comportamento desadequado do outro, seja o mau comportamento de um filho, seja uma postura intrusiva ou abusiva de um amigo ou familiar;
  • “Engolirmos” a necessidade de ganhar as discussões lutando ad aeternum para que o outro compreenda o nosso ponto de vista (ele por seu lado também luta para ser entendido, e nesta luta ambos se esforçam por se fazer ouvir e nenhum realmente se disponibiliza para escutar);
  • Mantermo-nos fiéis e respeitarmos as nossas necessidades nas relações que estabelecemos, sejam elas manter uma certa distância quando o outro é demasiado intrusivo, pedirmos explicações quando o outro é pouco claro, repormos a realidade dos factos quando o outro é injusto, e até pôr um fim na interação ou na relação quando o outro repetidamente é desrespeitador, desconsiderante ou tóxico.

Tudo isto aguentando a angústia e o medo que a situação também nos causa a nós (e lá está, essencialmente medo da perda do outro ou do seu amor).

Parece difícil? Talvez porque realmente o seja, mas quando temos a coragem de nos responsabilizarmos e tomarmos as rédeas da nossa vida, colocando-nos os limites que isso implica, tendemos a acabar por nos sentir mais seguros e satisfeitos nas nossas relações, porque contribuímos para elas se tornarem menos caóticas, menos pesadas, mais saudáveis, mais seguras.

Joana Fojo Ferreira – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

 

Quando a ansiedade deixa de ser normal

A palavra “ansiedade” provoca, desde logo, em nós uma certa tensão, como se a mesma representasse algo de muito mau. Quantos de nós já ouviu alguém dizer “Sou muito ansioso!” ou “Tenho problemas de ansiedade”? A verdade é que vemos constantemente a palavra ansiedade associada a uma série de outras palavras cuja conotação é negativa, como por exemplo, a palavra “problema”. Bom, mas palavras à parte, o que significa realmente a ansiedade?

Em primeiro lugar, interessa olharmos para a ansiedade como uma emoção, pois é exatamente o que ela é. Perante a antecipação ou expectativa de um acontecimento futuro, a ansiedade surge como resposta, fazendo-nos implementar recursos no sentido de ultrapassarmos determinado desafio ou prepararmo-nos para o mesmo. Imagine, por exemplo, que tem um trabalho importante para fazer e que este tem que estar pronto até daqui a duas semanas. É natural que se sinta ansioso (quanto mais não seja pelo medo que não conseguir entregar o trabalho a tempo), o que vai fazer com que se libertem uma série de neurotransmissores no cérebro, como o cortisol ou a adrenalina, gerando uma série de mudanças físicas como o coração a bater mais acelerado ou aumento da pressão sanguínea que vão fazer com que se movimente em direção à realização e conclusão do trabalho. Provavelmente se não existisse este estado emocional perante o alerta de um prazo para um trabalho, o mesmo nem seria feito! Seja pela antecipação de um prazo apertado de trabalho (trabalho esse que existe mesmo) ou da ideia de poder acontecer algo mau a alguém de quem gosta (que não passa de uma ideia, não havendo nada concreto que o justifique), a todos nós nos toca um pouco desta ansiedade. Assim, a ansiedade que sentimos pode ser normal e surgir em vários contextos, como no trabalho ou nas relações com os outros.

Em segundo lugar, e relacionado com o primeiro, por representar a expectativa ou antecipação de algo, a ansiedade pode ser frequente no nosso dia-a-dia quanto maior for a nossa antecipação em relação ao que está para vir. Como tal, a partir do momento que essa antecipação se torna constante, influenciando a forma como nos sentimos diariamente, essa ansiedade, dita normal, pode deixar de sê-lo. Imagine que deixa de antecipar apenas aquele trabalho que tem um prazo apertado, mas passa a fazê-lo com quase tudo. “E se eu for fazer análises e descobrir que tenho uma doença?”, “O meu amigo não me atendeu o telefone, de certeza que lhe aconteceu algo grave e eu não vou aguentar!”, “E se eu nunca conseguir trabalhar naquilo que quero?”. Repare como a seguir a estes pensamentos, vêm uma data de outros pensamentos que se tornam autênticas histórias de terror na sua cabeça. Como se de repente visse todo um filme sobre a sua vida a acontecer e isso o fosse deixando cada vez mais nervoso, com o coração a palpitar cada vez mais e todo uma sensação de descontrolo a passar-lhe pelo corpo. Repare ainda como todos esses filmes mentais e sensações corporais que deles advêm o deixam desconcentrado, com um medo crescente do que aí vem, com a necessidade de evitar certas coisas para não ter que enfrentar o medo que tem delas, entre muitas outras consequências. Provavelmente o seu dia-a-dia acaba por ficar bastante condicionado por estes sintomas, retirando-lhe a possibilidade de prazer que poderia ter e aumentando os seus níveis de cansaço e mal-estar. Ora é a partir daqui que se torna clara a diferença entre a ansiedade dita normal e a ansiedade patológica.

Como acabamos por perceber, a ansiedade patológica, ou perturbação de ansiedade, seja de que tipo for (pânico, ansiedade generalizada, ansiedade social, entre outras) alimenta-se por si só, como se de um círculo vicioso de tratasse. Quanto mais nos focamos em determinada coisa, mais ansiosos ficamos e maior dimensão ganha tudo aquilo que antecipamos. Assim sendo, a partir do momento que notamos que este círculo vicioso afeta o nosso dia-a-dia, na forma como trabalhamos ou como nos comportamos com os outros, torna-se importante procurar ajuda de um profissional de saúde especializado. A aprendizagem de estratégias para regular a ansiedade faz toda a diferença no aumento da nossa qualidade de vida!

Inês Chiote Rodrigues – Psicóloga Clínica

…DEAD MAN WALKING… Quando o desespero mata a Esperança.

NOTICIA

Imagino-o em casa, depois de ter ido visitar a sua companheira de sempre aos cuidados intensivos.

Imagino-o só, a tentar dar algum sentido à angústia que sentiu quando a viu entubada e com suporte ventilatório.

“Porque é que ela tem que sofrer tanto?” – ter-se-á perguntado.

De vez em quando os alarmes das máquinas disparam e depois calam-se novamente, mas não está lá ninguém para as ouvir senão ele.

De início corria a chamar as enfermeiras, mas estas iam-lhe dizendo que era normal, que as máquinas eram hipersensíveis e disparavam por tudo e por nada.

“Melhor as máquinas com a sua hipersensibilidade… Sempre lhe fazem alguma companhia…” – pensou ele – e deixou de incomodar as enfermeiras. Passou até a gostar que as máquinas apitassem, mas condoía-o o facto de se ir embora e então a esposa ficar completamente só, alheada até da sensibilidade das máquinas.

E essa solidão era-lhe extensível a ele.

Sentado no sofá da sala, era como se um buraco negro se abrisse no chão à sua frente:

        “- Que farei quando ela partir…?  E se calhar já partiu mesmo…”

Por vezes tentava recordar-se da face da sua amada e não conseguia e isso deixava-o ainda mais desesperado: “-Se ela se for eu nem me vou conseguir recordar da face dela!”

Estava confuso, baralhado, ele sabia que “todos teríamos que morrer um dia”, mas nunca sonhara que fosse tão difícil.

Olhava para a sua frente e não conseguia vislumbrar um futuro sem ela. Era como se verdadeiramente lhe amputassem a alma. Iria transformar-se numa alma errante e fugidia – um “dead man walking” – à espera da sua hora para se juntar a ela definitivamente.

Toda a esperança lhe escapava entre os dedos e o buraco negro aumentava e engolia-o numa angústia insuportável.

Não conseguia antever nada de bom senão o inferno na Terra.

Foi ao seu quarto e abriu a única gaveta do armário que estava sempre fechada.

Tirou a seu revólver 38 e foi direito ao hospital, repetindo para si mesmo:

“- Não vou deixar a minha mulher morrer sozinha…”

Casos como este são bem mais frequentes que o noticiado.

Decidi escrever acerca desta notícia sobretudo para exemplificar um fenómeno frequente na Depressão e que não acontece em nenhuma outra doença orgânica: A Depressão tem esta particularidade de “atacar” o ser humano na última coisa a morrer – A Esperança.

Como diz o meu colega António Sampaio, mais nenhuma doença faz isso, nem mesmo o cancro.

É como se um vírus infectasse a alma e lhe retirasse esta arma que nos dá resiliência e alguma imunidade contra as adversidades, porque sem esperança baixamos os braços e desistimos.

É preciso estarmos atentos porque muitas vezes as depressões são silenciosas e a desesperança e as ideias suicidas dos nossos mais queridos podem estar a desfilar à frente deles sem que tenhamos a mínima noção disso.

O que fazer?

Perguntar.

Perguntar sem medo, sem qualquer receio de ser mal interpretado.

“- O que se passa? Anda a pensar em quê?”

E explicitamente tentar saber: “Tem tido pensamentos de fazer mal a si próprio? Não tenha medo de me dizer. Eu preciso de saber porque me preocupo consigo.”

Temos que lidar com a Depressão com a mesma falta de piedade com que ela mata, mas com o dobro da dose em carinho para quem está a sofrer com ela.

 

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

As “Vozes” que dialogam: Psicoterapia, Rádio, Criatividade e o além mais…

O chão que (re)pisamos…”

Um processo psicoterapêutico começa no instante preciso do início de uma sessão… no primeiro olhar, no primeiro momento em que o sofrimento do outro toca o psicólogo/psicoterapeuta. Assim se inicia a “viagem” de descoberta, em que o libreto se escreve a dois, esboçando os contornos de uma história contorcionista…

Inevitavelmente, muitos são os momentos em que, para o psicólogo/psicoterapeuta, fazer o que já se sabe, por si só, não chega… Sobretudo quando se torna evidente que não está a resultar. Portanto, com alguma probabilidade, continuar a fazer o mesmo que já se percebeu que não funciona, mantendo premissas profissionais estanques e pouco flexíveis pode conduzir a um processo de frustração e de impasse terapêutico. O “chão que pisamos” é caminhado em círculos e torna-se imperativo ao psicólogo/psicoterapeuta pensar em formas de sair deste movimento e avançar com o processo… No fundo, parafraseando António Branco Vasco, torna-se fundamental encontrar formas de ser responsivo e ir ao encontro das necessidades psicológicas e características do paciente.

Espera-se, por isso, que a frustração e o impasse sentidos pelo psicólogo/psicoterapeuta possam ter um papel central no sentido de o impelir a fazer uma auto-reflexão, que não é mais do que um desafio a si próprio, aos seus limites, medos e inseguranças… E ter a ousadia, a coragem e a audácia para trilhar novos “caminhos”. Assim, o processo psicoterapêutico é algo em construção… que coloca ao psicólogo/psicoterapeuta o imperativo de procurar, inovar, pesquisar e, sobretudo, ousar criar algo diferente, onde a persistência e a tenacidade são fundamentais para se criar o tal libreto com modificações, novos registos e dinâmicas. O que implica, também, uma espécie de segurança insegura e de um arriscar calculado…

A Psicologia e a Psicoterapia parecem “beber” deste mesmo princípio de criatividade, onde prima uma necessidade intrínseca de reinvenção, de adaptação e de improviso… um processo lento construído pelas “mãos” de ambos os “artistas”: psicólogo/psicoterapeuta e paciente. “Mãos” que limam arestas, que aprimoram detalhes, que colam partes, separam outras, e que reconstroem peças à medida das diferentes perspectivas de luminosidade, que os raios de luz permitem vislumbrar ao incidir sobre elas.

E depois, é necessária a serenidade, a serenidade observante mas internamente produtiva e validante do psicoterapeuta, que lhe permite transmitir um significado ao outro e “emocionalizar” conteúdos… de criar uma homeostase “des-homeostasizante” que se vai auto-regulando… Assim como o movimento das ondas do mar, por vezes agitadas com marés revoltas, mas que se conseguem apaziguar e transformar em momentos de acalmia, onde a cadência do som constante produz um efeito tranquilizador.

Um exemplo inspirador de “chão a pisar”? A Rádio Aurora – A Outra Voz*

Com base no que foi exposto anteriormente, e mais especificamente focando o conceito de criatividade, quase que surge uma reflexão inevitável… como é que no decorrer da sua prática clínica, frequentemente solitária, os técnicos conseguem ter estes vislumbres do diferente, que se pautam por arriscar, inovar e trazer algo de novo? Talvez não exista uma única resposta a esta questão, mas, de facto, são necessários mais clicks de mudança e de criatividade ao longo da prática profissional. E, esta é, possivelmente, uma premissa básica igualmente partilhada pelo paradigma generalizado das intervenções realizadas na área da saúde mental. Nesse sentido, vou “levar-vos” a um lugar em particular que tem por nome de Rádio Aurora – A Outra Voz, um exemplo de algo diferente realizado no contexto psiquiátrico hospitalar em Portugal. Assim, começa:

Entra-se pela porta de um hospital psiquiátrico… e sente-se o peso da sua história ao longo dos anos à medida que se caminha erraticamente por entre os edifícios, ruas internas e passeios… entrecortadas pelo verde das árvores, dos raios de sol que atravessam a folhagem, e do som dos pássaros fugazes, ou dos “pássaros de fogo” em direcção ao aeroporto, que tendem a aparecer…

Após alguns minutos a caminhar, entra-se num edifício, sobem-se escadas, contornam-se corredores e chega-se a uma varanda. Sim, finalmente alcança-se uma varanda composta por um gradeamento singelo, meia dúzia de cadeiras, uma mesa comprida, aparelhos de som e vista para o jardim… Uma daquelas varandas tipicamente simples, e que tal como a maioria das coisas simples, deixa desde logo antever um enorme poder. Neste caso, o poder de unir pessoas, agregar pensamentos, partilhar/ouvir/gerar ideias. O poder de somente estar, ser… e ter uma voz.

Nesta varanda a que vos “levo”, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, é realizado um programa de rádio original e invulgar no nosso país. Criado em 2009, destaca-se por ser pioneiro no combate à discriminação e estigma face à doença mental. Tem por nome Rádio Aurora – A Outra Voz. Os responsáveis pela gravação do programa são uma equipa dinâmica constituída por utentes do próprio Centro Hospitalar (residentes ou externos, que aí realizam o seu acompanhamento médico) e um dos psicólogos iniciadores do mesmo (Nuno Faleiro da Silva). Neste Programa são entrevistados e ouvidos variados convidados, planeiam-se antecipadamente as questões a fazer… e, na hora de “subir o pano” faz-se silêncio porque se vai iniciar o “espectáculo”…

E, no seio de uma intervenção deste tipo que permite dar “voz” às necessidades e vontades dos próprios utentes, foi elaborado um conjunto belo de palavras sob a forma de uma “Carta aos Psicólogos”**. Não só a beleza das palavras aqui é espelhada, mas igualmente outra beleza se destaca… o facto de esta Carta conter, em si mesma, um reforço na primeira voz do que já vem sendo indicado na literatura e no Código de Ética e Deontologia dos Psicólogos sobre:

  1. Necessidades em termos de políticas na área da saúde mental e questões (contempladas no Código de Ética e Deontologia dos Psicólogos):

  • “… estreita relação entre psicólogos, psiquiatras e toda a equipa de técnicos que acompanham os pacientes”;

  • “…todos os utentes deviam ter acesso a consultas de psicologia gratuitas ou a preços acessíveis”;

  • “… devem-nos tratar com todo o respeito e dignidade, e ao que dizemos dar credibilidade”.

  1. Características relevantes dos psicólogos/psicoterapeutas (escuta activa, empatia, validação):

  • “…Os psicólogos deviam dar feedback aos utentes”;

  • “… é muito importante saber escutar e saber também interagir com o doente… e respeitá-lo e de certa forma amá-lo”;

  • “… interessarem-se por nós e tentarem ajudar na concretização realmente efectiva da realização dos nossos sonhos”;

  • “… devem dar a segurança aos doentes”;

  • “… apoiar em todas as situações”;

  • “… aos psicólogos cabe activamente escutar, valorizar, incentivar e animar. E quando for preciso ajudar a direccionar, e sempre que achem necessário para a psiquiatria nos encaminhar”.

 

De facto, provavelmente não existe uma resposta única e ideal para “como fazer diferente” e ser criativo, tanto em intervenções individualizadas como em grupo, mas talvez o conteúdo desta “Carta aos Psicólogos” possa abrir luzes nos caminhos dos técnicos da área da saúde psicológica e mental. No sentido de perceber que os pacientes são mais resilientes do que inicialmente se pensa, sendo necessário envolver activamente a sua “voz” na procura de soluções criativas para os seus problemas reais. E, por fim, que esta Carta seja igualmente uma lembrança diária da importância do papel do psicólogo/psicoterapeuta:

Por vezes os psicólogos são mesmo a única pessoa,

Com quem podemos sobre nós abertamente conversar…

E conscientes deste facto devem estar.

Dêem o vosso melhor, trabalhem com dedicação e amor,

Dêem tudo de vós e ouçam realmente a nossa voz…”

E estas palavras ficam a bailar-me na mente, quase como se fossem uma espécie de “declaração de amor”, fazendo lembrar novamente António Branco Vasco quando diz que “amar é simplesmente deixar ser”…

* Facebook da Rádio Aurora – A Outra Voz: https://www.facebook.com/radioaurora.outravoz/

Programas em arquivo: http://www.rum.pt/shows/radio-aurora-a-outra-voz

** A versão completa da “Carta aos Psicólogos” pode ser ouvida no link: https://soundcloud.com/radio-aurora-a-outra-voz/cartapsicologos.

Teresa Santos- Psicóloga e Psicoterapeuta

IMAGINAÇÃO. Para que te quero?

Sonhar acordado ou imaginar, é viver possibilidades, é habitar um mundo de possibilidades impossíveis e de impossibilidades possíveis…

Quando ouvimos dizer sobre alguém que “é muito imaginativo”, ou “tem uma enorme imaginação” – salvo os casos em que tal é dito com ironia, como sinónimo de “inventa muito” ou mesmo de “é mentiroso” – ser imaginativo é tido como um elogio, algo de muito positivo. Já quando se ouve dizer “é um sonhador…” ou “passa a vida a sonhar acordado”, normalmente estes comentários pressupõem um julgamento negativo. Então em que ficamos?

Substituir demasiadas vezes a realidade pelo sonho, ou sair demasiadas vezes da realidade a cavalo da imaginação pode tornar-se num hábito ou um truque fácil (com ou sem a ajuda de substâncias) que depois se torna difícil abandonar. É como se encontrássemos um local no nosso imaginário que nos permite aceder a um cantinho de paz, de afecto, de liberdade, ou mesmo um local onde nada procuramos, e em que apenas nos abstraímos temporariamente do sofrimento da nossa realidade. Se o fazemos em circunstâncias terrivelmente negativas e muito específicas (enclausuramento, por exemplo), imaginar pode ser mesmo a nossa salvação. Se o fazemos em circunstâncias menos drásticas e de forma sistemática, em vez de ser uma porta aberta ao futuro e ao possível, torna-se um refúgio de ilusão, em vez de nos dar asas, prende-nos no canto da inacção.

Quando aos 5,10,15 anos sonhamos com príncipes e princesas encantados, namorados e namoradas lindas, a nossa imaginação está-nos a deixar “surfar” desejos e possibilidades. Quando aos 30, 40, 50 anos continuamos no mesmo registo, estamos a fugir da realidade e a refugiarmo-nos num qualquer conto de fadas pouco palpável.

Se solidificarmos em modo “Peter Pan” estamos a optar por viver na fantasia e esquecer a realidade. Esta forma de estar na vida é danosa para o próprio e para os que lhe estão mais próximos e deixa de ter a ver com imaginação. Trata-se de dificuldade de funcionar, enquanto adulto, no mundo real.

Mas, regressemos à imaginação saudável. Ela permite-nos uma relação mais intensa connosco, com o mundo e com o/a nosso/a parceiro/a.  Permite a partilha dos sonhos sobre as (im)possibilidades de mim, de nós e do futuro. As fantasias conjuntas e partilhadas são uma forma de comunicação e reforçam os laços de intimidade na relação.

Também no campo da sexualidade a imaginação e a fantasia são da máxima importância, pois elas são um dos pontos de partida para que o desejo de estar com o outro se mantenha, se afirme e se autoestimule. O desejo tem uma enorme força condutora, quer seja na afirmação de si, quer seja na vontade de estar em relação. Como tal, favorecer o desejo de estar, de fazer, de dar, de receber é fundamental para a manutenção e desenvolvimento das relações e da própria imaginação, que estimula o desejo, ao mesmo tempo que é estimulada por ele.

Num relacionamento é fundamental amarmos o ser real que temos ao lado e não um produto do nosso imaginário. Muitas vezes, nas fases de paixão, tudo parece possível porque a imaginação e a realidade parecem estar entrelaçadas num todo balsâmico, mas, como diz o povo, “a paixão é cega”, e por vezes, quando esta acaba, pode haver a ilusão de que o amor acabou, ou que “se é assim não vale a pena”. Este “assim” é a realidade a separar-se da imaginação ou da ilusão, é a possibilidade de recuperar a visão e é, por isso, também, a possibilidade de amar verdadeiramente, não a ilusão ou a fantasia, mas a pessoa real e inteira que está junto de nós.

Nada nos pode impedir de imaginar, a não ser o receio de o fazer. Pode surgir o medo de abrir possibilidades que não queremos explorar, esquecendo que a imaginação funciona como um mediador entre nós e as nossas acções e que podemos imaginar sem nunca agir. É claro, que se imaginamos continuamente não querer estar onde estamos, melhor será agir e não procurarmos eternamente refúgio na imaginação.

A imaginação vem, isso sim, possibilitar um convívio mais saudável com uma realidade que se abraça, e da qual não se deseja fugir, antes pelo contrário, pretende-se que essa realidade possa ir mais além, seja mais partilhada, mais íntima e mais profunda e por isso se convida a imaginação a embarcar nessa viagem que é a vida.

Cristina Marreiros da Cunha- Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

 

Maria já não sabe o que fazer…

Maria já não sabe o que fazer. Tudo na sua vida parece cinzento.

Tem uma família perfeita, um marido que faz tudo por ela, dois filhos que adoram a mãe, uma vida abastada, como ela nunca imaginou ter. Uma casa a seu gosto, que teve sempre a liberdade e a possibilidade de a decorar como quis, dois carros, uma casa na praia, uma casa no campo, um trabalho que antes adorava. Tudo na sua vida não justificava o seu sentir.

O que se passava com ela?

Desde há algum tempo que tudo parecia insípido, insuficiente, que nada lhe dava prazer, e tudo era feito com esforço. Um peso nos seus ombros, um aperto no peito que nunca lhe dava descanso. O tempo não ajudava. Quanto mais o tempo passava, mais a vida lhe parecia difícil. E ainda por cima, para ela, nada disto fazia sentido.

Como tinha ela chegado a este ponto?

Deixara de ser esposa, não conseguia ser mãe, nem se sentia pessoa. Arrastava-se da cama para o sofá, e do sofá para a cama. Abria o frigorífico e parecia que nada lhe apetecia, e com isso já perdera peso, e quando se olhava ao espelho, um dos seus maiores inimigos, parecia uma amostra do já tinha sido. E pensava todos os dias na ingratidão que era o seu ser: não tinha razão para assim se sentir. E isso ainda a deitava mais abaixo.

Outrora já tinha sido feliz.

Lembra-se distantemente desses momentos, onde a vida lhe sorria, onde ela era capaz. Sentimento agora desaparecido, a capacidade. E olhava à sua volta e ainda mais triste se sentia. Ouvia tantos que lhe diziam que também estavam deprimidos e seguiam com a sua vida. Que trabalhavam, enquanto ela estava de baixa há tanto tempo, que já medo sentia de voltar aquele lugar, que eram pais e mães, que eram pessoas, enquanto ela se sentia uma manta de retalhos, e que nunca mais sairia deste fosso de lodo que a prendia, e quanto mais ela batalhara no passado, mais enterrada ficava.

Era tão difícil para ela admitir que precisava de ajuda. Isso seria a confirmação do fracasso que se sentia. O marido já insistira, mas ela sentia que sozinha não conseguiria voltar à sua vida. E mais uma ouvia: “Eu também estou deprimida, mas sabes não me posso dar ao luxo de ficar em casa”, como se fosse um luxo ao capricho o seu sofrimento. E mais uma vez lhe diziam, amigos e estranhos “tens de te erguer de novo, faz um esforço”, e mais uma vez ninguém percebia que ela tentava todos os dias, e que o que fazia era o que conseguia. E quanto mais ouvia estas coisas pior se sentia.

Olhava para os olhos tristes dos filhos, que sentiam que a mãe já quase não existia, e para ela era mais uma facada no peito que sentia. Seria então uma opção?

Considerando que existem sete mil milhões de pessoas no mundo, e que a Organização Mundial de Saúde refere que existe uma média de cento e vinte e um milhões de pessoas com um quadro que permite um diagnóstico de um quadro clínico de depressão, nas suas diversas manifestações, vemos então que existe uma prevalência de 1,7% da população que é portadora desta doença.

Então porque ouvimos tantas pessoas que se afirmam estar deprimidas?

Isto inicialmente deve-se ao desenvolvimento massivo a nível de países, e que é verificado que quanto mais o país é desenvolvido, com visões mais capitalistas, tem mais psiquiatras por metro quadrado, podemos então afirmar que existem fatores extra biológicos que justificam esse mesmo quadro clínico. Ou seja, quanto mais temos acesso a diferentes objetos de desejo, variedade de produtos, e afins, maior se torna a nossa lista de necessidades, e a não concretização das mesmas aumentam exponencialmente o sentimento de insuficiência na nossa vida.

Pegando no exemplo, inclusivamente nacional, e olhando para as pequenas comunidades do interior de Portugal, em que o acesso a recursos diversificados é limitado pelo isolamento dessas regiões, a lista de necessidade sendo ela mais reduzida, mais facilmente as pessoas sentem os seus desejos satisfeitos, e logo diminuem algumas variáveis que contribuem para quadros depressivos.

Por outro lado, existem vários tipos de depressão, em que alguns tipos se tornam essências à aceitação de perdas naturais da nossa vida, como por exemplo a morte de um pai ou mãe numa idade avançada, de forma a não se desenvolver um quadro de luto patológico, outras tem uma valência mais biológica, em que elas perduram mesmo mudando algumas condições externas à pessoa, tendo nestes casos que se recorrer à introdução de psicofármacos.

Em ambos os casos o acesso a psicoterapia é essencial no seu tratamento.

Então porque é que tanta gente se auto-rotula como depressivas, e além disso parecem que conseguem viver sem qualquer limitação evidente?

Isto deve-se ao facto da banalização da palavra depressão.

Os quadros clínicos de depressão, devem ser avaliados e diagnosticados por técnicos de saúde mental, pois muitas vezes se confundem sentimentos de tristeza que podem ser semelhantes aos verificados nos casos de depressão clínica, que contribuem para esta denominação incorreta e uso excessivo deste termo.

Estar triste pode ser um estado de ânimo adaptativo e normal e não deve ser confundido com tristeza.

Quando olhamos para os critérios necessários para este diagnóstico, o primeiro e primordial, é a interferência de forma evidente destes mesmos sintomas na vida quotidiana da vida do paciente. Outros são os critérios que vos convido a pesquisarem, em que podemos afirmar que os mais conhecidos são sentimentos de tristeza profunda e melancolia mantidos durante um período alargado de tempo, uma incapacidade de olhar para si e para o futuro de forma justa e realista, pois parece que este quadro nos coloca um filtro cinzento à frente dos nossos olhos, e que faz com que tenhamos uma visão em túnel e que impossibilite uma plasticidade de conseguirmos dar significado diferente às diferentes áreas da vida da pessoa.

A banalização desta palavra contribuiu para dificultar a perceção do que verdadeiramente se trata quando falamos de depressão.

Comentários como “eu também estou deprimida e sigo com a minha vida” ou “tens de fazer um esforço” ou “tu podes dar-te ao luxo de estares deprimida” vêm corroborar a ideia negativa que os doentes sofrem de depressão, podendo nem ser este caso.

Como antes foi referido esta doença é verificada em quase duas pessoas em cem e, pelo que sabemos, parece ser uma doença mais prevalente do que é na realidade.

Procure ajuda especializada se começar a ter os sintomas mais conhecidos da depressão, para corretamente ser avaliada e ser tratada atempadamente, pois quanto mais tempo se vive com a doença, mais difícil se torna sobreviver a ela!

 

Pedro Garrido – Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

Ansiedade social e medo de falar em público

O que é a ansiedade social?
A ansiedade social é um padrão persistente de desconforto e nervosismo acentuado em contextos sociais; podem ser contextos de interacção, ou contextos de desempenho, como o caso de falar em público.
A emoção comumente associada à ansiedade social é a vergonha, o medo de ser ridículo ou desadequado, e de ser julgado e criticado pelos outros.
A pessoa com ansiedade social tende a ter uma imagem de si como socialmente desadequada ou sem valor, como uma fraude que não merece a atenção ou o reconhecimento dos outros.

De onde vem e como é que é mantida a ansiedade social?
Esta sensibilidade extrema à crítica e a ser visto como desadequado ou impostor, advém tipicamente de na infância ter recebido mensagens críticas de estar a ser vergonhoso ou não estar a ser suficientemente bom; mensagens estas que podem ter sido mais explícitas ou mais implícitas.
A pessoa cria portanto um modelo de si como alguém defeituoso ou inferior e esta imagem prolonga-se pela sua vida e é frequentemente reforçada pela própria pessoa sem que ela se aperceba disso. O que geralmente acontece é que, para lidar com esta ansiedade, desenvolve estratégias que aliviam a curto-prazo, mas que alimentam a imagem negativa de si a médio-longo prazo.
Por exemplo, a pessoa tende a preocupar-se excessivamente com o seu desempenho, no sentido de evitar falhas que possam ser julgadas pelos outros, e neste processo perde o contacto com a sua experiência no momento e o conteúdo do que quer apresentar, no caso de uma comunicação em público, e passa a observar-se de fora, a focar-se na imagem que estará a passar aos outros. Isto naturalmente desconcentra-a da tarefa em si e pode inclusivamente prejudicá-la, reforçando a ideia de que se é incompetente ou inferior.
Outro exemplo é o processo de evitamento: face ao medo de falar em público, evita fazê-lo, mas ao evitá-lo perde a possibilidade de desconfirmar a sua crença negativa de si e reforça a ideia de que não é suficientemente competente.
Ainda um outro, a pessoa com ansiedade social tende a tentar passar a melhor imagem possível de si, com a ideia de que qualquer falha, por pequena que seja, vai ser alvo de crítica e humilhação; mas ao não expor os seus lados mais frágeis e vulneráveis fica sempre com a sensação de estar a ser uma fraude, e à custa disso tem dificuldade em acreditar e integrar o feedback positivo dos outros, sentindo que eles só têm uma boa imagem de si porque não a conhecem verdadeiramente.

Como é que se quebra o ciclo de ansiedade social?
Sucintamente há dois focos, há o foco dos comportamentos que contribuem para manter a ansiedade social, e há o foco das experiências precoces, na infância, que contribuíram para esta vergonha excessiva e esta imagem de si como defeituoso e inferior.
Para o primeiro foco, é preciso desafiar estes comportamentos: refocar na tarefa em vez de se estar a focar exageradamente em si, combater o evitamento e expor-se de facto às situações temidas, e aprender a vulnerabilizar-se perante os outros, percebendo que todos temos defeitos e não nos tornamos obrigatoriamente alvo de crítica e ridicularização por eles.
Para o segundo foco, o trabalho é muito de descobrir internamente o que o tornou tão vulnerável à crítica e à ridicularização, que experiências contribuíram para esta imagem tão negativa de si, no sentido de poder desfazer esta imagem e contribuir para um maior à vontade e maior satisfação nas interacções e desempenhos sociais.

Naturalmente que este trabalho não é fácil sozinho, caso sinta que a ansiedade social prejudica seriamente a sua vida pessoal ou profissional e a sua satisfação com os seus relacionamentos e interacções, invista num trabalho psicológico que o possa ajudar a recuperar ou a descobrir uma forma mais tranquila e satisfatória de estar consigo próprio e com os outros.

Joana Fojo Ferreira – Psicóloga e Psicoterapeuta

Natal e Compaixão

O Natal é uma época em que a tendência natural para a compaixão parece emergir com mais força. As razões para este fenómeno serão com certeza muitas e de vária ordem, sociais, culturais, religiosas, familiares, psicológicas, … ter compaixão e ser solidário com os que menos têm, seja saúde, dinheiro, companhia… será natural durante todo o ano, mas quando o frio aperta, e o ambiente é evocativo de reunião familiar, e de outras celebrações, é compreensível que essa vontade de ajudar a que estes dias sejam menos penosos, esteja mais presente.

O Natal é, para uns, alegre e festivo, para outros, mais sombrio e, para alguns outros, chega a ser mesmo um pesadelo que se deseja que passe depressa. Esta época é sempre evocativa de memórias, boas, más ou mesmo ausentes, e remete-nos para uma série de lembranças, acompanhadas de um turbilhão de emoções e pensamentos associadas à época de natal, ou, sempre presentes, mas exacerbadas nesta altura. Porém, hoje não irei por aí.

Irei apenas deter-me na compaixão, isto é, na capacidade de compreender e sentir o sofrimento do outro, de empatizar com a sua experiência. A compaixão é algo que até certo ponto nos é inato, pois a nossa necessidade de vinculação e adaptação, intimamente ligadas à sobrevivência, a isso nos incitam. Mas também é algo que é aprendido e desenvolvido. Sabemos que os neurónios espelho têm um papel fundamental neste mecanismo. Ora, como é sabido, as vivências de cada um de nós são inúmeras e as aprendizagens da realidade que vamos fazendo desde que nascemos, as defesas que vamos criando, o espaço que nos foi dado ou não, para nós e para os outros, vão-nos diferenciando e fazendo com que vivamos a compaixão, tal como muitos outros sentimentos, de forma diversa.

A compaixão não está ligada a qualquer sentimento, expectativa ou necessidade de retorno. A compaixão é uma vivência “com” o outro, “junto” do outro, e não uma vivência do próprio “para” o outro. Não há dádiva, nem dívida, há companhia, há partilha, e é esse movimento de estar com o sofrimento do outro que será motor de algo mais.

Porque nem sempre é fácil acompanhar o sofrimento do outro?

Porque ter compaixão é estarmos em contacto com as nossas próprias vulnerabilidades, é sentirmos as fragilidades inerentes ao nosso ser particular e ao ser humano em geral, das quais tantas vezes queremos escapar e esquecer.

Por outro lado, porque queremos, por vezes, ajudar compulsivamente?

Porque, para evitarmos entrar em contacto com as nossas próprias vulnerabilidades, optamos por acudir às vulnerabilidades dos outros, numa tentativa de nos sentirmos mais fortes e superiores, ao mesmo tempo que nos esquecemos de nós. Este é um claro sinal de que estamos a fazer um duplo mau trabalho: o primeiro connosco e o segundo com os outros.

Buda diz: «Se a sua compaixão não o incluir a si, ela está incompleta»

Em termos psicológicos, o primeiro alvo de compaixão deverá ser o próprio.

Que amigo poderá ser para os outros se você não consegue ser o seu melhor amigo?Que ajuda poderá prestar se não se sabe ajudar a si mesmo?

Quando a ajuda aos outros está a substituir a ajuda e atenção que deveria dar a si próprio, irá esperar reconhecimento, agradecimento, ou irá zangar-se ou deprimir-se quando tal não se verificar. Este é um sinal claro de que não está a ter compaixão por si, e que não está a saber ter compaixão genuína pelos outros. Está sim a utilizá-los como suporte a si, à sua autoestima, à sua fragilidade que deveria ser atendida, e ser o seu primeiro alvo de compaixão.

Neste Natal, ouça-se com compaixão, aceite-se, prescinda de controlar o que não pode, o que não deve (filhos, amigos, namorados, familiares) e meta mãos à obra nas transformações que estão ao seu alcance e que sente que deve fazer para se reequilibrar. Só estando psicologicamente bem consigo, poderá amar os outros prescindindo de controle ou retribuição e tendo verdadeira compaixão.

Cristina Marreiros da Cunha – Psicóloga e Psicoterapeuta

 

Curas distorcidas

                      Esta é uma reflexão acerca do que se faz para se evitar o inevitável.                               – O quê? Pergunta o leitor.

                      Fazer o que nos tempos actuais a sociedade ensina para evitar a dor.                  De entre as receitas que prometem curar e/ou controlar o que não se quer, tal              como, ficar deprimido, ter ansiedade, ficar “em baixo”, doente, ou ser infeliz; elegi:             Fazer meditação, ter pensamentos positivos, e ser uma boa pessoa.

Estas são receitas que algumas pessoas trazem para a terapia e que, paradoxalmente, estão associadas a confusão, frustração e ansiedade. Carlos Drummond de Andrade já nos tinha dito que “A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.” E sabemos o quanto isto nos dá trabalho. O ponto de partida costuma ser “fazer por se evitar”, mas DEVERIA ser “fazer para se lidar”.

Fazer meditação é amplamente divulgado como ferramenta essencial de cura mas para ser eficaz requer uma relação entre corpo, coração e cabeça. A meditação funciona quando somos capazes de direccionar a atenção para uma parte dolorosa, abri-la e, posteriormente, criar uma nova consciência acerca de nós com esta experiência. Para isto é preciso estar totalmente (corpo+coração+cabeça) presente no momento e receber a auto-compaixão associada do momento de sofrimento recordado. Se não conseguir usar a informação do corpo para a traduzir e enquadrar com a cabeça será uma experiência incompleta de cura. Também pode acontecer que não saiba distinguir o que são as suas emoções e o que é a sua pessoa. Por exemplo, escutar partes internas críticas e de julgamento é, com frequência, a primeira adversidade que se encontra quando se começa a meditar. Às vezes, a primeira e última, porque o resultado de encontrar-se com um lado julgador sem ter o seu lado autêntico presente será mais ou menos como ser atirado aos lobos sem protecção. Provavelmente não vai querer repetir a experiência e talvez até queira mesmo passar a evitá-la porque tornou em medo, confusão e divisão uma experiência que se pretendia ser de alívio, clareza e de reunificação.

Os pensamentos positivos têm a capacidade de nos dinamizar, aumentar a nossa confiança e prontificar para a acção. Podem ser poções mágicas de realização porque tocam no acreditar que é possível. Relembrando Osho, os pensamentos positivos ganham poder quando se colocam no mesmo patamar que os negativos e não quando os renegam e se faz de conta que não existem. Não podem ser usados para ler estados emocionais desagradáveis; por exemplo, se acorda de manhã e não se sente animado não poderá pensar que se sente animado. Conseguir aceitar a forma como se sente e deixar correr o dia pode ser uma boa opção. Ou seja, tolerar a incerteza de como será o passar do dia quando não acorda animado pode ser surpreendentemente positivo. Se distorcer e negar a sua verdadeira realidade (do momento) estará a ser desonesto consigo e, se o fizer por sistema, poderá perder a  oportunidade de ficar disponível para encontrar o que o torna verdadeiramente animado. Contar mentiras a si próprio, acerca de si próprio, contribuirá apenas para se desligar do sentimento de si e desviar-se do seu projecto de cura.

Diria que ser uma “boa pessoa” é um princípio orientador de conduta associado ao que está certo e é bom nas pessoas. A desorientação surge quando as pessoas não sabem o quanto boa tem que ser para ser considerada uma boa pessoa e perdem-se, por exemplo, a fazer coisas pelos outros ou a evitar dores inevitáveis. Colocam sistematicamente os outros à sua frente porque ganham a aceitação (intermitente) que não têm em relação a si mesmas e, com isto, não sabem separar-se do que é informar os outros daquilo que lhes causa dor, do que é a satisfação associada à afirmação da sua defesa, do que é ter prazer em infligir dor ao outro. Uma boa pessoa tem a clareza da posição que ocupa em relação aos outros e ao mundo. Pode sentir, pensar e agir contra a vontade dos outros e continua a ser boa pessoa porque isto só significa que é diferente do outro e que está a defender valores como respeito, confiança, amizade, compaixão, gratidão, etc. Uma boa pessoa por instrução racional e sem consciência dos seus próprios valores estará muito desviada do seu auto-conhecimento e do que nos torna realmente bons. Deixar de ser boa pessoa porque já não serve as necessidades do outro é, no mínimo, perverso e não representa nenhum tipo de cura, nem pessoal, nem, e muito menos, para a humanidade.

Sabemos que é importante criar a oportunidade de nos separarmos de partes dolorosas para funcionarmos no dia-a-dia mas também que a verdadeira libertação acontece quando as curamos. Curar não é esquecer a dor, é integrar em nós de forma mais harmoniosa aquilo que nos dói. A melhor terapia usa a consciência para curar o coração (Kornfield, 2012) e isto implica alívio do medo de se ligar a si e aos outros com a benesse de conseguir transformar experiências dolorosas. A conexão estabelecida numa relação terapêutica ensina-lhe como a dor contém verdades que abrem o seu coração à alegria e à vida. É que do outro lado da dor está a força e a confiança, e, acredite, não vai querer perder esta parte. Porque depois de dizermos adeus aos demónios, precisamos aprender a viver com os nossos anjos, chama-se a isto capacidade para uma vida plena (Russel, 2015).

Rita dos Santos Duarte – Psicoterapeuta

Contra Argumentos Não Há Factos

Sim, é verdade, a versão original é “contra factos não há argumentos”; no entanto, a nossa mente é tão poderosa que, por lógico que seja pensar que contra factos não há argumentos, os argumentos que a nossa mente cria tendem a ser difíceis de combater por mais factos que lhe peçamos para considerar.

Se não vejamos, quantas vezes fazemos interpretações das motivações dos outros, por exemplo de não gostarem verdadeiramente de nós, para quando eles explicam o motivo da ausência ou da indisponibilidade, nós acharmos mesmo assim que estão só a ser simpáticos e por mais que neguem no fundo não gostam de nós. Ou por exemplo, quando surge um boato sobre alguém, mesmo que venha a ser desmentido, ficamos sempre com a pulga atrás da orelha e tendemos a ter dificuldade em verdadeiramente voltar a confiar. E ainda outras vezes, no que toca a nós próprios, criamos ideias sobre quem somos e como funcionamos, e quando nos indicam uma característica diferente que vêem em nós, tendemos a defender-nos e ter dificuldade em nos revermos na característica que nos estão a atribuir.

O que é que se passa aqui: entre várias razões possíveis para esta dificuldade da mente em desconfirmar ideias pré-concebidas, uma é que temos uma história de desenvolvimento que molda a visão que temos do mundo e das coisas, e que influencia a interpretação que fazemos dos factos. Nós não somos tábuas rasas que se limitam a receber estímulos do exterior e a responder em conformidade e apenas ao estímulo específico, as nossas experiências passadas, as nossas ideias e opiniões, as nossas inseguranças, as nossas peculiaridades, contribuem para fazermos associações de coisas e ideias, de forma que, quando estamos a responder a um estímulo, não estamos apenas a responder a esse estímulo mas a toda uma rede de associações a ele, sejam elas ligações mais próximas ou mais distais, façam elas mais ou menos sentido face ao estímulo específico apresentado.

Qual é o antídoto para este mal que nos assola: em primeiro lugar é importante clarificar que não há uma receita única nem nenhuma só por si suficientemente eficaz, no entanto, há alguns cuidados que podemos ter que poderão favorecer cairmos menos vezes neste erro.
É importante procurarmos manter um espírito de abertura à informação que recebemos do exterior, e permitirmo-nos verdadeiramente questionar possibilidades alternativas às nossas percepções, aos nossos “argumentos”, ainda que questionando, naturalmente, as motivações e os argumentos dos outros também. E por outro lado, é importante não desconsiderar a importância de “dormir sobre o assunto”, disponibilizarmo-nos para voltar a pensar sobre a questão mais tarde, menos a quente, menos defensivos, com as ideias mais claras e a mente mais aberta.

No fundo é importante estarmos abertos a (re)construirmo-nos ou (re)descobrirmo-nos a cada momento, cientes que isso não muda a nossa essência e o nosso valor, mas pelo contrário permite tornarmo-nos mais conscientes e mais coerentes connosco próprios.

Doutora Joana Fojo Ferreira – Psicóloga e Psicoterapeuta