O Eu no nascimento de um filho

Falamos constantemente no filho sonhado, já imaginado como Ser antes de o ser, de como na nossa mente surgem imagens dos seus olhos, cor do cabelo, até de como será quando for grande.

Deseja-se e prepara-se um filho sonhando-o em casal ou nos momentos de quietude em que guardamos a imagem só para nós.

Podemos ter já a preocupação do que acontecerá ao casal enquanto relação a dois para além do trio que se forma, para além do pai e mãe que nascem. E possível e importante planear esta manutenção de espaço a dois, que será menor concerteza e aceitar que dentro do espaço família, ainda que numa fase inicial a indisponibilidade para se ser a dois seja maior, a dinâmica muda. Somos casal, somos pai, somos mãe e somos pais. As atenções, cuidados e amor estão muito direcionados, se não totalmente, para aquele que é o nosso bebé.

A par com todas estas mudanças de papéis, existe um lado prático. As tarefas multiplicam-se, o cansaço acumula-se, o tempo diminui e escapa. Podemos e devemos também preparar-nos para estes primeiros momentos mais exigentes, recorrendo a nossa rede de suporte, delegando tarefas, pedindo ajuda.

Quantos mais “tenho que fazer” conseguirmos delegar, mais tempo e espaço mental teremos para nos dedicarmos ao amor incondicional de cuidar do nosso bebé e de nos cuidarmos enquanto casal.

Contudo, falamos de papéis, de pai, mãe, casal. E o Eu? O que acontece ao Eu individual? O Eu que lia, que cultivava um certo desapego agora aparentemente impossível.

A mãe, não que não se depare com esta perda temporária de ser, existir individualmente, começa este processo de aceitação e partilha desde o momento em que o próprio corpo deixa de ser apenas dela. A adaptação a uma perda que será sempre temporária de se existir enquanto ser individual comeca 40 semanas antes do nascimento. Abdica da forma física, de vícios, de determinados alimentos e já não é só uma mas duas desde a concepção. O que não impede que sinta esta perda do Eu aquando do nascimento do filho, implica apenas que idealmente esta abdicação, espaço mental e emocional para o bebé já começou 9 meses antes.

O pai vive esta experiência de forma necessariamente diferente. Não significando que não partilha todas as fases da gravidez, que não tenha uma atitude empática, que não altere a sua rotina ou empenho no trabalho em prol da família alargada que se desenha, fá-lo de forma externa. O confronto com a perda do espaço individual ocorre aquando do nascimento do filho.

As solicitações e disponibilidade, a abdicação, o cuidar do bebé, a maior ajuda nas tarefas domésticas que se multiplicam, a par de um regresso a vida laboral que ocorre normalmente antes do da mãe, podem levar a um sentimento de opressão, de morte do Eu naquilo que era a sua liberdade individual de cumprir-se enquanto ser único.

Poder-se-a cumprir e realizar enquanto pai, marido, casal ou profissional. E tal pode ser suficiente e preenchê-lo. Todavia pode também conduzir a uma necessidade de fuga, de um regresso a um tempo e um espaço em que se era por si só, quando não há aceitação que esta é uma fase mais exigente e absorvente. Porque o sempre e o nunca são palavras perigosas e não reais. Porque a projeção no futuro de um espaço individual que nunca mais existirá oprimira qualquer um que se preze enquanto Eu.

Aceitemos então este momento de dedicação ao ser amado, acabado de nascer. E reencontrar-nos-emos depois enquanto ser individual nesta nova dinâmica, conciliando-o com todos os outros pápeis que desempenhamos. Porque a vida fluie e mudança e adaptação são constantes. E o Eu permanecerá e terá tempo e espaço. E é também na relação e na família que se trabalham e respeitam os espaços para se ser – Eu, Tu, o Pai, a Mãe, o Bebé, o Casal.

“Larga a pedra da margem do rio, a do que já foi e flui com a água para aquilo que é Agora, construindo o que será depois.”

Catarina Satúrio Pires – Psicoterapeuta

Ano que ainda vai novo

Ano Novo brinde

O Ano Novo é por excelência a época para resoluções, compromissos e o estabelecimento de objectivos. Contudo, todos os anos vemos alguns dos feitos a que nos propusemos ficarem pelo caminho, adiados para outra altura, que por vezes nunca chega. E ano após ano há itens que se repetem na lista, arrastando com eles a convicção de que não iremos, mais uma vez, conseguir atingi-los.

Quantos mais objectivos falhamos, mais agudizada fica a certeza – frequentemente não real – de que não temos capacidades ou não somos suficientemente bons, o que pode conduzir a um decréscimo na nossa autoconfiança. Assim, é importante percebermos que muitas vezes a falha não se encontra nas nossas características pessoais, mas na forma como definimos os nossos objectivos.

Proponho então que, ao definir as resoluções para este ano, tenha em conta os seguintes aspectos:

  • Defina um objectivo realista. Se quer deixar de fumar, por exemplo, e actualmente fuma três maços de tabaco por dia, talvez seja melhor propor-se a reduzir gradualmente a quantidade de cigarros diários em vez de parar de forma abrupta.
  • Olhe para si com atenção e descubra que recursos possui para levar a cabo o objectivo a que se propõe. Da mesma forma, identifique o que ainda precisa de desenvolver em si.
  • Ao definir um objectivo, divida-o em etapas que facilitem o seu caminho e lhe deem linhas orientadoras, tornando a sua meta em algo menos distante e que vai alcançando de forma gradual. Um objectivo não tem de ser uma tarefa hercúlea!
  • Não exija o mesmo de si todos os dias – se dormiu 8 horas e tudo corre normalmente na sua vida, é natural que se empenhe mais nas tarefas daquele dia; se, por outro lado está doente ou dormiu apenas 3 horas, não pode esperar o mesmo. Permita-se aceitar que cada dia é diferente e que isso não significa fracasso.
  • Peça ajuda. Ter uma boa rede de suporte permitir-lhe-á não só partilhar as suas dificuldades como não perder o seu objectivo de vista.

Catarina Satúrio Pires – Psicoterapeuta

O Agradável e o Desagradável

Com a dor normalmente agimos de uma de duas formas: ou fugimos dela a sete pés ou nos afundamos nela, tornando-a parte da nossa identidade. Torná-la parte do que nos define não é o mesmo que ficar com a dor que sentimos no momento, no presente. É ressoar com o Passado e projectá-la no futuro.

Ficar com a dor no presente é senti-la no corpo, chorá-la no agora e observar como se vai diluindo. É aperceber-nos que com o desagradável também coexiste o agradável, que este não deixa de existir. Duas faces da mesma moeda. E perceber que Sempre e Nunca são duas palavras que condicionam a forma como experimentamos o mundo e não são necessariamente verdadeiras.

Fica parte de uma história:

“Era uma vez um rei muito poderoso que governava um país distante. Ele era um bom rei. Mas o monarca tinha um problema: ele era um rei com duas personalidades. Havia dias em que ele se levantava exultante, eufórico, feliz . Desde o inicio do dia tudo lhe parecia maravilhoso. Os jardins do palácio pareciam mais bonitos. Seus servos eram simpáticos e eficientes. E tudo era bom. Nesses dias, o rei baixava os impostos, distribuindo riqueza, concedendo favores e legislando para a paz e bem estar de todos.

No entanto, havia outros dias, dias escuros. De manhã o rei percebia que queria ter dormido mais, mas quando se apercebia disso já era demasiado tarde e o sono já tinha fugido. Por mais esforços que fizesse, não conseguia entender por que seus servos estavam com um humor tão mau. O sol e a chuva incomodavam-no. A comida estava demasiado quente e o café muito frio. A ideia de ter pessoas no seu escritório agravava a sua dor de cabeca. Nesses dias, o rei pensava nos compromissos assumidos anteriormente e assustava-se ao pensar como iria cumpri-los. Nesses dias o rei aumentava os impostos.

Temendo o futuro e o presente, assombrado por erros do passado, naqueles dias legislava contra o seu povo e a palavra que mais utilizava era NÃO. Ciente dos problemas que essas mudanças de humor causavam, o rei chamou todos os sábios, assistentes e assessores de seu reino para uma reunião.

“Senhores “, disse-lhes“todos sabem das minhas mudanças de humor, todos beneficiaram com a minha euforia e se ressentiram com a minha raiva. Mas quem mais sofre sou eu, que num dia construo e no outro destruo porque mudo a forma de sentir as coisas. Eu preciso que vocês trabalhem em conjunto para obter um remédio, poção ou feitiço para que eu não seja tão absurdamente otimista que não veja os factos, nem tão pessimista que oprima e prejudique o que quero.”

Os estudiosos aceitaram o desafio e trabalharam durante semanas sobre o problema do rei. No entanto, foram incapazes de encontrar a resposta para os problemas do rei.

Naquela noite, o rei chorou.

Na manhã seguinte, um estranho visitante pediu audiência. Era um homem moreno e misterioso.

” Sua Majestade “, disse o homem , inclinando-se, “ouvi falar nos seus males e na sua dor. Trouxe-lhe um remédio. E, inclinando a cabeça , deu uma caixa de couro ao rei. O rei, meio surpreso e esperançoso, abriu-a e olhou para dentro da caixa.”

Tudo que eu tinha era um anel de prata .

” Obrigado “, disse o rei , animado “é um anel mágico?”

– Claro que é “ , disse o viajante, “mas sua magia age não só por usá-lo no seu dedo… Todas as manhãs, ao acordar, deve ler a inscrição que tem o anel . E lembre-se destas palavras, cada vez que olhar para o seu dedo anelar.”

O rei tirou o anel e leu em voz alta : “Você deve saber que isto também passará “

Adaptado de Jorge Bucay

Catarina Satúrio Pires – Psicoterapeuta