– Eu estava mais que bem até receber este telefonema – disse, enquanto olhava para as unhas como que verificando nervosamente se estavam bem pintadas.
Falava do tio paterno que tinha telefonado ao fim de 30 anos, pedindo-lhe para se encontrarem, que queria vê-la, que queria fazer as pazes com ela antes de morrer.
– Ele agiu muito mal com os meus pais e eles cortaram relações com ele e desde essa altura nunca mais ouvi falar dele. Ele deixou de fazer parte da minha vida quando eu era ainda adolescente, ele esqueceu-me e eu esqueci-me dele. Ele desapareceu da minha vida, mas para lhe ser sincera – da forma como eu sinto isto – ele nunca fez parte dela sequer. Ele desapareceu quando eu era ainda muito nova. Para lhe ser sincera, ele é-me completamente indiferente e agora cai aos trambolhões, vindo dum passado que eu já tinha esquecido, para pedir a minha bênção antes de morrer?
Voltou a olhar para as unhas, a esticar os dedos e rodar as mãos como se este interminável exercício pudesse aliviar o turbilhão de emoções que a assaltava.
– Pelos vistos, ele não lhe é completamente indiferente? – acentuei.
Parou, olhou-me fixamente e disse-me:
– É, sim. Ele é-me completamente indiferente. Se eu soubesse que ele iria novamente desaparecer e ficar mais 30 anos ou a eternidade sem dar mais notícias isso não me incomodaria absolutamente nada. O que me incomoda é que há uma parte de mim que apetece encontrar-se com ele e dizer-lhe que não perdoa, o quanto eu ainda me sinto magoada pela forma como ele fez sofrer os meus pais. Mas há também uma outra parte de mim que acha tudo isto irrelevante, que todos os seres humanos cometem erros – nomeadamente eu – e que errar é inerente à condição humana. Sabe, eu não tenho sequer que o perdoar, compreendo que ele tenha feito as escolhas que achou mais certas mas não concordo com essas escolhas e as escolhas que ele fez revelam um carácter e uma estatura moral – ou a ausência dela – que eu não apreciaria em ninguém e que eu nunca aceitaria num amigo meu, quanto mais num familiar. Eu quero-o longe de mim – como sempre esteve – mas não acho que tenha que o perdoar de nada. Mais ainda, eu não quero esse poder de o perdoar ou não, eu não aceito esse poder, eu nem sequer pedi esse poder.
– Mas o que me diz é que há uma parte de si que não quer perdoar…
– Sim. Há uma parte de mim que gostaria de lhe dizer que a minha mágoa por ter feito os meus pais sofrer não desapareceu e não vai desaparecer por ele cair do céu aos trambolhões a pedir para fazer as pazes comigo.
– Ele disse mesmo isso? “Fazer as pazes”? – perguntei.
– Exactamente. Fazer as pazes. – repetiu – Mas ele não entende que a paz que ele procura só poderá encontra-la dentro dele? Que acima de tudo ele tem que perdoar-se a si próprio? Que por muito que eu não o perdoe ou que lhe repita cem vezes que está perdoado ou que nada tenho que lhe perdoar, ele só vai encontrar a paz que deseja quando, bem no coração da alma dele, ele se perdoar a si próprio?
– Acho que você chegou a uma conclusão importante: você não é nem nunca poderá ser responsável pela paz ou ausência de paz de outro ser humano.
– Nem quero esse poder, compreende? Não pedi, não quero, nem acho justo que me seja delegado – logo por ele – esse poder. Cabe-lhe a ele perdoar-se ou não, independentemente do que eu sinta em relação a isso.
– Portanto, você não tem que se confrontar com ele para o perdoar ou não. Mas há uma parte de si que não o perdoa…
– Há uma parte de mim que ainda está magoada com ele.
– E que não o perdoa.
– Há uma parte de mim que gostava de fazer-lhe ver que a minha absolvição não faz desaparecer a minha mágoa.
– E que por isso não o perdoa.
Parou por alguns segundos e disse:
– Está fora de questão esse assunto do perdão. Não me reconheço esse direito nem esse poder. Só ele pode encontrar a paz dentro dele. Eu não sou tida nem achada, nem me acho tida ou achada para o que só ele pode fazer, dele para com ele.
– Muito bem, você conseguiu responsabilizá-lo pela inquietude dele e pela responsabilidade de encontrar nele mesmo a paz que ele procurava através do seu perdão, mas isso não me parece deixá-la a si em paz consigo própria…
– Talvez eu não me perdoe por não conseguir ultrapassar a mágoa que sinto em relação a ele. Porque eu gostava que fosse como ele pensa, que por uma arte de mágica eu pudesse estalar os dedos e fazer desaparecer toda a mágoa dentro de mim. Eu gostaria que fosse assim, mas a mágoa que eu sinto não desaparece só porque eu gostaria que desaparecesse.
– Mas a condição para se sentir em paz consigo própria é fazer desaparecer toda a mágoa num estalar de dedos, num passe de mágica?
– Isso não é simplesmente possível. Eu não consigo fazer isso acontecer assim dessa forma.
– Claro que não consegue. Nem é suposto que consiga. Você não é nenhum robô com um botão “on” e “off”. Não é assim que funciona a mente humana, não é assim que funciona a Natureza.
– Mas perdoar – para mim e para comigo mesma – é também ultrapassar esta mágoa, este ressentimento. E eu quero perdoar, entende? Eu quero ultrapassar isto.
– O primeiro passo você já o fez. Foi admitir para si própria que está ressentida e que a sua intenção genuína para consigo mesma é que este ressentimento desapareça. Que você conscientemente não quer sentir esta emoção em relação a esta pessoa. No fundo, o que me está a dizer é: eu estarei em paz comigo mesma quando eu não sentir qualquer ressentimento em relação a esta pessoa.
– Então aí o perdão será completo – rematou.
– Para si – acrescentei.
– Para mim?
– Sim. Para si, como você mesma disse. Mas isso pode não acontecer tão cedo, não acontecerá certamente amanhã, nem por nenhuma arte de mágica.
– E até lá? Que faço eu quando me der conta que este ressentimento ainda não desapareceu, mesmo que eu deseje que ele desapareça?
– Até lá você tem que aceitar essa sua limitação. Tem que aceitar que a mente humana lida com as emoções como pode, guarda-as na memória e que pode revivê-las vinte anos mais tarde com a mesma intensidade arrebatadora. Que as suas aspirações actuais podem já nem concordar com essas emoções que isso não as vai fazer desaparecer por magia. Tem que aceitar a sua condição humana e, se quiser, tem que se perdoar pela sua humanidade, na sua humanidade.
Ficou em silêncio por alguns instantes, as mãos repousando, desta vez em paz, sobre os joelhos.
E disse:
– Mas sabe? Mesmo assim eu não quero esta pessoa na minha vida.
– É uma pessoa que você não escolheria para o seu círculo de amizades?
– Nem para minha família, se pudesse escolher quem pertenceria ou não à minha família.
– Entendo. E isso é totalmente legítimo. Você pode e deve escolher quem você deseja que faça parte da sua vida e excluir quem você não deseja que faça parte dela.
Este foi um resumo de um conjunto de sessões com uma paciente e com esta paciente, entre outras coisas que aprendi, retive que:
Perdoar não é esquecer.
Perdoar é muito mais que absolver.
Perdoar pode ter que passar por nos perdoarmos a nós mesmos por não conseguirmos perdoar como desejaríamos.
Perdoamos o quanto somos capazes, conscientes de que a Paz poderá tardar. Aceitarmos a nossa condição humana permite-nos viver em Paz com as limitações inerentes à nossa humanidade.
Perdoar não implica recebermos nas nossas vidas quem não desejamos que faça parte dela.
Nunca conseguiremos perdoar de coração se não formos completamente honestos connosco mesmos. O que, aliás, nem vale a pena tentar.