“- Você tem uma doença bipolar e vamos ver como se vai dar com esta nova medicação.” – disse-lhe.
A doente encarou-me como se eu lhe tivesse pronunciado uma sentença de morte.
– Eu tenho “essa” doença?
– Sim – respondi.
– Mas isso é para o resto da vida, não é?!
– Sim. É para o resto da vida.
– Quer dizer que vou ficar dependente destes medicamentos até morrer?
– Não vai ficar dependente de nada. Estamos a falar de medicamentos e não de cocaína ou heroína.
– Isso quer dizer que sou “louca”?
– Não! Claro que não!
– Mas posso ficar louca? Pode-me dar um “amok”? Um acto de loucura?
Estas são perguntas muito frequentes dos meus pacientes quando lhes é diagnosticada uma doença bipolar.
E este pequeno diálogo, tantas vezes repetido em várias consultas, expressa os inúmeros e legítimos receios dos pacientes em relação à sua doença e que, na grande maioria das vezes, são infundados.
Costumo responder que a esmagadora maioria das doenças humanas são doenças crónicas, ou seja, “para o resto da vida”, desde a diabetes, hipertensão, alergias, miopia, artrites, artroses, úlcera péptica e por aí adiante – costumo dizer-lhes que 98 % (*) de todas as doenças humanas são crónicas e incuráveis, à excepção de algumas doenças infecciosas e, mesmo assim, não todas – as infecções por HIV, hepatite C e, por vezes, hepatite B também são incuráveis.
Por outro lado, há que desmistificar a ideia de “dependência dos medicamentos”.
De facto, os medicamentos habitualmente usados no controlo da Doença Bipolar, não induzem dependência química porque não são aditivos.
Se é verdade que existem forma de doença bipolar muito graves e incapacitantes, estas não são a regra. Os medicamentos na doença bipolar permitem, na maior parte dos casos, restituir ao paciente a sua qualidade de vida e funcionalidade: “Não se trata de você não conseguir viver sem tomar medicamentos. Trata-se de viver com maior qualidade de vida.”
Por fim, tantas vezes, entre outras interrogações, vem a “pergunta da loucura”:
“Será que sou louca? Poderei ficar louca? Pode dar-me um “amok” e cometer um acto de loucura?”
Chegados aqui, entramos também no território nebuloso do estigma – mais do que não querer ter uma doença bipolar, o que mais assusta o paciente é a possibilidade de ser “louco”.
Geralmente, devolvo a pergunta com outra pergunta:
– O que significa para si “ser louco”?
E, não surpreendentemente, a maior parte das pessoas responde: “Não sei” ou “Diga-me você que é o médico”.
O conceito de loucura é tão assustador que o paciente nunca reflectiu de forma ponderada e madura sobre o assunto, mas fundamentalmente, o conceito de loucura vem associado ao receio mais profundo e inaudito de perda de controlo sobre si mesmo, à perspectiva da imprevisibilidade completa do seu próprio comportamento, à incapacidade de continuar a levar uma vida funcional e capaz, à perda da autonomia e à possibilidade de uma dependência progressivamente maior de terceiros.
Há que desconstruir todos estes receios, um por um, com uma disponibilidade total para ouvir e esclarecer o paciente.
Frequentemente, são estas as consultas que se revelam mais decisivas no estabelecimento duma relação sólida entre médico e paciente, onde o paciente descobre um “porto seguro” para partilhar os seus maiores medos, poder desconstrui-los e “reconstruir” uma nova imagem de si próprio mais adaptativa, mas, em última análise, será a própria evolução e melhoria clínica que irá desconfirmar todos estes receios.
Assim, este é um trabalho específico que tem que ser revisitado várias vezes ao longo do tratamento, sem nunca esquecer que os médicos nunca tratam doenças, mas antes pessoas portadoras de uma determinada doença, seja ela qual for.
(*) A estimativa é minha mas não andará longe da verdade. À parte certas viroses e doenças infecciosas controláveis com antibióticos, a esmagadora maioria das doenças humanas é crónica.
Obrigado pela sua opinião.
João Parente