Desde o aparecimento da subdisciplina da psicologia da saúde que a comunidade científica tem vindo a estabelecer um debate sobre a legitimidade da investigação qualitativa, sendo cada vez mais demonstrada a sua importância e utilidade na investigação em saúde (Murray, & Chamberlain, 1998) e tendo obtido um reconhecimento mais evidente nas últimas décadas (Barnett-Page & Thomas, 2009), ainda que não se tenha instituído como uma abordagem considerada equitativa aos métodos quantitativos, usados nos ciclos de investigação estabelecidos. Entre 1998 e 2008, a área dos serviços da saúde e de gestão da investigação tem vindo a ser renovada com o uso de métodos de investigação qualitativa, e os artigos relacionados representam 9% das publicações de jornais da especialidade (sendo os estudos de caso, as entrevistas e fontes documentais, as técnicas de recolha de dados mais usadas), sugerindo uma contribuição incomparável para a base de conhecimento desta área (Weiner, Amick, Lund, Lee, & Hoff, 2011).
O objectivo da investigação qualitativa é aprender alguns aspectos sobre o “mundo” social e gerar novos conhecimentos aplicáveis ao mesmo (Rossman & Rallis, 1998). Apresenta algumas vantagens epistemológicas, na medida em que os actores são considerados indispensáveis para a compreensão dos comportamentos sociais; éticas e políticas, pois permitem aprofundar as contradições e os dilemas que atravessam a sociedade concreta; e, metodológicas, como um instrumento privilegiado de análise das experiências e do sentido da acção (Poupart, 1997). Como esta metodologia pode ser usada por investigadores de variadas posições epistemológicas, será mais preciso usar-se o termo metodologias qualitativas (Deslauriers, 1997; Willig, 2001). Porém, alguns conceitos são partilhados (Willig, 2001):
- foco no significado, ou seja, na forma como as pessoas dão sentido ao mundo e o experienciam, em detrimento de relações do tipo causa-efeito;
- experiência de viver com condições particulares e as formas de lidar com as mesmas (estudos nos meios naturais envolventes);
- não colocar variáveis de estudo prévias ao processo de investigação, sendo colocadas questões, tais como “Como vivem as pessoas com determinada condição/situação específica?”, “Como gerem as mudanças no trabalho?”, “O que fazem quando formam um grupo?”, etc.
Mais especificamente, o design deste tipo de metodologias tem em conta os seguintes aspectos:
- a pergunta de investigação (identifica o processo, objecto ou entidade/pessoas);
- os dados recolhidos tendem a ser naturalistas, e., não são codificados, sumarizados ou categorizados, procurando que a recolha minimize a redução de informação;
- solicitar feed-back aos participantes pode ser uma forma de garantir a validade dos dados, bem como a recolha efectuada em contextos reais de vida;
- investigação mais centrada na experiência dos fenómenos com grande detalhe e menos na preocupação com a replicabilidade dos dados, ainda que tal possa acontecer, como sugerem alguns investigadores (Silverman, 1993);
- a representatividade da amostra é pouco relevante nesta medologia, até porque se trabalha com grupos relativamente pequenos de participantes, que estão directamente relacionados com o objectivo da investigação (estudo de caso, por exemplo). Porém, usar técnicas cumulativas pode ser uma forma de minimizar esta questão;
- o investigador tem que assegurar aos participantes do estudo: consentimento informado, preservação e garantia de confidencialidade, princípio “do not harm”, liberdade de participação, acesso a todas as informações prévias sobre o estudo, bem como aos resultados e publicações.
Após formulada a questão de investigação será necessário escolher o tipo de técnica mais adequada de recolha da mesma, salientando-se as mais frequentemente usadas: a entrevista semi-estruturada, a observação participante, os diários e os grupos focais.
A entrevista semi-estruturada permite ao investigador ouvir os participantes, em particular, as suas experiências, e consiste num número relativamente pequeno de perguntas abertas (que podem ser descritivas, estruturais, de contraste e avaliativas). A observação participante faz parte de variadas actividades de investigação e é feita no setting natural dos participantes, o observador pode ser incógnito ou reconhecido como o investigador e as observações tendem a não ser standardizadas. O diário não é muito frequente nas investigações da área da psicologia porque constitui um desafio para o participante e para o investigador, podendo ter efeito nas rotinas e expectativas das pessoas. Ainda que se procure que os participantes elaborem um diário não estruturado, o investigador necessita dar algumas directrizes, tais como a frequência de entradas no diário, período de tempo, conteúdo e meio para registo, registando, com as suas próprias palavras, as suas experiências, actividades e sentimentos em relação a um determinado tópico. Por sua vez, os grupos focais apareceram mais recentemente e têm ganho uma crescente popularidade na área qualitativa da psicologia da saúde, uma vez que providenciam uma alternativa às entrevistas semiestruturadas, constituindo-se como uma entrevista em grupo que usa a interacção entre os participantes como uma fonte de dados. O investigador assume o papel de moderador, fazendo as apresentações dos participantes, inserindo as questões em foco e, gentilmente, iniciando a discussão. Os grupos focais podem ser homogéneos vs heterogéneos, pré-existentes vs novos ou interessados vs ingénuos (Willig, 2001).
Estas 4 técnicas irão recolher dados variados, que podem ser analisados através de diferentes métodos de análise, sendo que as técnicas de recolha de dados e os métodos de análise dos mesmos estão intimamente relacionados. Os métodos de análise podem ser combinados entre si e abrangem a análise de conteúdo, análise interpretativa fenomenológica, análise narrativa, “grounded theory”, análise do discurso, etnografia, análise conversacional, estudo de caso e investigação-acção, sendo alguns explanados seguidamente (Willig, 2001).
A análise de conteúdo foca-se nos fenómenos sociais, sugerindo que os significados são construídos através da interacção social, tendo como objectivo identificar precisamente os temas e padrões comuns dos fenómenos sociais (Braun & Clarke, 2006).
A análise interpretativa fenomenológica centra-se na experiência individual e na forma como os seres humanos adquirem conhecimento sobre o mundo que os rodeia, sendo que o produto final será sempre uma interpretação do investigador sobre a experiência do participante. Este método de análise adequa-se às transcrições das entrevistas semi-estruturadas, sendo realizada, primeiro, uma leitura do texto para elaborar notas que reflectem pensamentos e observações do participante; segundo, uma identificação/nomeação de temas que caracterizam cada secção do texto; e, terceiro, uma tentativa de inserir estrutura na análise, agrupando os temas encontrados, elaborando uma tabela final com os mesmos (Willig, 2001).
A análise narrativa foca-se na experiência individual e nas histórias que as pessoas contam sobre as mesmas. Contar histórias permite dar significado aos eventos do dia-a-dia (formação de significados), restaurar a ordem, dar coerência e explicar incongruências, reconstruir o passado e orientar o futuro, obter ferramentas para a mudança, imagens alternativas e produção de novas perspectivas sobre determinado assunto, rever a identidade e criar novas afiliações (Riessman, 2002).
A “grounded theory” procura facilitar o processo de descoberta e geração de teorias, através da progressiva identificação e integração de categorias de significação dos dados, e, obter, como produto final, uma teoria de compreensão de determinado fenómeno em investigação. Este método é compatível com variadas técnicas de recolha de dados, tais como a entrevista de recolha de dados, observação participante, grupos focais e até os diários (textos e documentos também podem ser alvo deste tipo de análise). O processo fundamental aqui presente é o de codificação, que pode ser feito linha a linha, frase a frase, parágrafo a parágrafo, página a página, secção a secção, etc.
A análise do discurso foca-se na linguagem e engloba: 1) o discurso psicológico: forma como a linguagem é usada para negociar e gerir interacções sociais, assim como para alcançar objectivos interpessoais (qualidades performativas do discurso); 2) a análise de discurso de Michel Foucault: que explora o papel da linguagem na constituição da vida psicológica e social, descrevendo, criticando e explorando o “mundo” discursivo em que a pessoa se insere e as suas implicações na subjectividade e experiência. Idealmente, este método deverá ser usado para analisar textos e conversações que ocorrem naturalmente.
Os estudos de caso não se constituem por si mesmos um método, mas antes uma abordagem ao estudo de entidades singulares, que pode envolver o uso de uma variedade de diversas outras técnicas de recolha de dados e de métodos de análise, caracterizando-se sobretudo, pelo foco na unidade particular de análise: o caso. Este pode ser uma organização, cidade, grupo de pessoas, comunidade, doentes, escolas, intervenções, até mesmo uma nação ou estado. Os estudos de caso podem ser usados em muitas disciplinas (sociologia, história, educação, etc), com métodos quantitativos e também qualitativos, e, recorrendo a entrevistas semi-estruturadas, observação participante, diários, documentos pessoais e oficiais. Os tipos de estudo de caso podem ser intrínsecos vs extrínsecos, simples vs múltiplos e descritivos vs explicativos.
Por fim, salienta-se que na investigação qualitativa os métodos não podem ser vistos como uma espécie de “receita”, ou seja, é sempre necessária criatividade e reflexividade, de forma a serem adaptados à investigação específica que se pretende fazer (Stige, Malterud & Midgarden 2009), bem como ao produto/conclusão final pretendido (p.e. fazer políticas informativas relacionadas com a saúde) (Barnett-Page & Thomas, 2009).
Referências
Barnett-Page, E., & Thomas, J. (2009). Methods for the synthesis of qualitative research: a critical review. BMC Medical Research Methodology, 9, 59-70.
Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101.
Davidsen, A. (2013). Phenomenological Approaches in Psychology and Health Sciences. Qualitative Research in Psychology, 10, 318–339.
Deslauriers, J.P. (1997). L’ Índuction Analytique. In Poupart et al., La Recherche Qualitative, Enjeux Épistémologiques em Méthodologiques (pp. 293-309). Canadá: Gaetan Morin.
Murray, M., & Chamberlain, K. (1998). Qualitative research in health psychology: developments and directions. Journal of Health Psychology, 3(3), 291-5. doi: 10.1177/135910539800300301.
Poupart, J. (1997). L’ Entretien de Type Qualitatif: Considérations Épistémologiques, Théoriques, et Méthodologiques. In Poupart et al., La Recherche Qualitative, Enjeux Épistémologiques em Méthodologiques (pp. 173-209). Canadá: Gaetan Morin.
Willig, C. (2001). Introducing Qualitative Research in Psychology, Adventures in theory and method. New York: Open University Press.
Riessman, C.K. (2002). Analysis of Personal Narratives. In Gubrium, J., & Holstein, J. (Eds), Handbook of Interview Research: Context & Method (pp. 695-710). Thousand Oaks CA: SAGE.
Rossman, G., & Rallis, S. (1998). Learning in the Field: An Introduction to Qualitative Research. London: SAGE.
Silverman, D. (1993). Interpreting Qualitative Data: Methods for Analysing Talk, Text and Interaction. London: SAGE.
Stige, B., Malterud, K., & Midtgarden, T. (2009). Toward an agenda for evaluation of qualitative research. Qualitative Health Research, 19(10), 1504–16.
Weiner, B., Amick, H., Lund, J., Lee, S., & Hoff, T. (2011). Use of Qualitative Methods in Published Health Services and Management Research: A 10-Year Review. Medical Care Research and Review, 68(1), 3–33. doi:10.1177/1077558710372810.