MINDFULNESS – BUDISMO E PSICOTERAPIA – II

A descoberta do “mindfulness” pelo mundo psi – Voltar ao estado de recém-nascido

O desapego e a desidentificação são, assim, dois dos pilares fundamentais do pensamento budista.

A prática de mindfulness, mais do que uma finalidade em si mesma, é para o budista a etapa última no processo de desapego e desidentificação.

Desapegado dos desejos comuns à maioria dos seres humanos o aspirante já não vive a vida quotidiana mergulhado num sem número de projectos e actividades que visam a satisfação dos mesmos – já não almeja prazer, nem poder, nem status, nem posses materiais, nem vive obcecado com a ideia do sofrimento se não conseguir satisfazer o objecto dos seus desejos e por fim vive desapegado da vida e do medo de morrer.

Mas o passo mais difícil é o da desidentificação das próprias emoções e pensamentos, já que não é tão óbvio, mesmo para quem tenha uma educação budista, que os pensamentos, emoções e pensamentos não sejam mais do que instrumentos que o Ser utiliza, tal como a roupa que veste ou os alimentos que ingere.

Na prática do mindfulness o aspirante permite que os pensamentos, as emoções e as sensações aconteçam com a pré-atitude de se desapegar dos mesmos, de os vivenciar sem neles se reter, deixando-os fluir como fotogramas de um filme que se desenrola à frente dos seus olhos, sem se comprometer na construção de qualquer narrativa ou interpretação dos mesmos.

Não se trata de parar de pensar ou parar de sentir até porque, numa fase inicial, é simplesmente impossível que tal aconteça.

Uma imagem budista retrata a mente como uma macaco agitado que passa o tempo todo disponível a saltar de galho em galho, em livre associação, sem qualquer disciplina e a esmagadora maioria dos seres humanos vive a maior parte da sua vida entretido e adormecido a acompanhar cada salto do macaco e a identificar-se com todos os movimentos destes.

No mindfulness o aspirante sabe que o macaco não vai parar de saltar – é da natureza da mente não estar quieta – o macaco vai continuar, durante algum tempo, a saltar de galho em galho, de pensamento em pensamento, de emoção em emoção – a diferença é que o aspirante se decide a parar de prestar atenção aos saltos do macaco e a valorizá-los como se os seus pensamentos fossem a única vida psíquica possível.

O aspirante não vai poder ignorar os pensamentos, as emoções e as sensações, mas também não se vai deter neles. Sabendo que qualquer evento psíquico é efémero, vai deixar de lhes prestar atenção.

Aos poucos – diz a experiência dos praticantes – a mente começa a acalmar, os pensamentos tornam-se menos frequentes e começa a haver espaços entre os pensamentos – como se o habitual nevoeiro de ruído psíquico se começasse a dissipar.

Aqui surge habitualmente a pergunta: então o que fica se pararmos de pensar?                    Um vazio?

Para uma mente viciada na actividade cognitiva, emocional e sensorial compulsiva, a ideia de um vazio sem pensamentos, emoções ou sensações é sentida com horror, como se o mindfulness fosse um mero exercício de niilismo psíquico.

O que sobra quando o nevoeiro se dissipa não é certamente e apenas a ausência de nevoeiro.

Para quem consiga experimentar, os primeiros momentos de mindfulness são vividos com uma lucidez e uma clareza antes desconhecida e uma paz interior igualmente inédita.

No mindfulness não sobra o vazio, mas antes a consciência pura que subjaz, não só a todos os eventos psíquicos, mas à própria consciência de Si.

Mindfulness é a consciência de si próprio não contaminada pela actividade compulsiva da mente.

Mindfulness é a consciência a vivenciar-se a si própria.

Pela primeira vez, o aspirante pode ter uma noção clara e límpida da consciência pura que traz dentro de si, sem qualquer condicionamento, sem qualquer juízo de valor, sem história anterior, sem ansiedade pelo futuro.

Não é sequer preciso prestar atenção a coisa nenhuma porque a consciência pura é atenta por natureza.

Difícil de compreender?

Um dia permita-se observar um bebé que ainda não saiba proferir uma única palavra.

Observe-o num momento em que ele não sinta fome, nem sede, não sinta sono, nem qualquer outro desconforto físico.

Olhe e observe-o.

Vai perceber que ele está extremamente atento e, ao mesmo tempo, na vivência duma imensa paz, uma quietude inenarrável.

Onde ele está?

Onde todos deveríamos estar: no Aqui e no Agora.

Nós não temos outro remédio senão viver no aqui e no Agora.

A única escolha que nos é permitida é a de tentar fazê-lo com consciência ou sem ela.

Assim sendo, não é possível estar senão no Aqui e no Agora.

Sem nevoeiro, se possível.

Então mindfulness é isso?

Voltar ao estado da mente que eu tinha quando era um recém-nascido?

Tire a mente da equação.

E agora tente…

Mindfulness é a vivência do Ser que vivencia a consciência pura.

Sem mente.

(CONTINUA)

João Parente – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta

4 thoughts on “MINDFULNESS – BUDISMO E PSICOTERAPIA – II

  1. Boa tarde Dr. Enquanto lia o texto, em particular esta passagem “já que não é tão óbvio, mesmo para quem tenha uma educação budista, que os pensamentos, emoções e pensamentos não sejam mais do que instrumentos que o Ser utiliza, tal como a roupa que veste ou os alimentos que ingere”, ocorreu-me que tal como quando temos calor tiramos alguma peça de roupa, o mesmo exercício podia ser feito com os pensamentos ou emoções. Se ele me estão a “aquecer” demais posso decidir que agora prescindo deles. Mas e quando estou com frio? Devo agasalhar-me. Posso fazer o mesmo com a minha mente? Posso torná-la mais confortável colocando nela pensamentos “calorosos”. Ou como “os alimentos que ingere”. A alimentação não é só nutrição, é também facilitadora da desintoxicação. Prolongando a analogia, o mindfulness corresponderia à desintoxicação, certo? E para nutrir a mente? Precisaria de pensamentos e emoções “nutritivos”, certo? Hmmm, está a parecer-me que também descubro uma coisa sobre a essência do mindfulness: um estado descondicionado, em que não se precisa de pensamentos ou emoções para ser. Estou aqui a ser e a existir, independentemente da actividade da minha mente. Isto até me faz pensar que assim é durante o sono. Mas mindfulness também não é como se estivéssemos a dormir…porque estamos conscientes dos nossos pensamentos e emoções.

    Ufa, isto é muito difícil Dr.! Vou mas é fazer mindfulness.

    • Gostei imenso da metáfora que usou para os pensamentos nutritivos, mas o que eu creio ser mais importante é, acima de tudo, ter consciência que você é a autora dos seus pensamentos e da história da sua vida – mas que o Ser existe, o Ser É, muito para além de qualquer história ou pensamentos.
      Nós não somos o que pensamos – somos o Ser capaz de pensar.
      Nós não somos a nossa mente, mas podemos usá-la para nos vestirmos com pensamentos mais calorosos e nos despirmos de pensamentos mais egodistónicos, mas somos nós que o fazemo e usamos a nossa mente para o fazermos.
      Esta resposta é adaptativa desde que não percamos a perspectiva que é a mente que nos é subordinada e não o oposto.

      Quanto a ser dificil isso parece-me realmente subjectivo.
      Eu lembro-me da primeira vez que tentei andar de bicicleta. Parecia-me impossível que algum dia viesse a conseguir, mas num dado momento deixei-me simplesmente fluir e passei a fazê-lo sem dificuldade.
      É uma questão de prática, eu acho.

  2. Muito Bom João, mas não me surpreende. Muito facil de entender para qualquer pessoa, e demasiado apelativo a experimentar. Muito Muito obrigado, por ajudares as pessoas a mais que serem felizes , serem algo muito ais maravilhoso, Livres

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